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JESUS, ARISTÓTELES, SCROOGE, DANTE E O SENTIDO DO NATAL

Eduardo Perez
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JESUS, ARISTÓTELES, SCROOGE, DANTE E O SENTIDO DO NATAL

Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.

Mais um Natal e certo como haverá arroz com passas, também surgem as reflexões sobre o momento.


Deixemos de lado os gurus e coaches espirituais das redes sociais com seus palatáveis (e desnutritivos) biscoitos para buscarmos algo que possa de fato alimentar a alma, e não só encher a barriga do ego.


Se você é cristão como eu, ou só simpatizante, talvez saiba sobre as virtudes teologais, atinentes a nossa relação com Deus, e cardeais, que se referem à nossa relação com o próximo.


As teologias são a fé, a esperança e a caridade; e as cardeais são a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.


Tratados foram escritos a respeito das virtudes e estão à disposição de quem tiver curiosidade de pesquisar a respeito em qualquer buscador de internet. Hoje em dia o acesso à informação é fácil e amplo, em que pesem as censuras: basta querer procurar.


Isso me lembra de outros tempos, quando, no começo da internet no Brasil, o acesso era ruim e tudo tinha que ser garimpado. Fazíamos bons amigos e sequer sabíamos como eles se pareciam.


Foi num desses garimpos que, em 1995, conheci em uma sala de filosofia do IRC um então monge beneditino, que entrara em busca de uma fonte em grego de editor de texto, arquivo que por acaso eu tinha.


Hoje ele não é mais monge, deixou o mosteiro em busca de outro chamado, mas recordo de uma história que contou de um monge que estava a fumar escondido e outro monge apareceu e o viu. O fumante estava transgredindo uma regra e na hora temeu ser denunciado. O que chegara perguntou se estava tudo bem, conversou sobre outros assuntos e se despediu, sem nunca acusá-lo.


E você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com o Natal. Tudo, porque representa o amor, não há severidade e o prazer da denúncia, a letra sobre o espírito.


O Natal não é uma data pontual que se exaure em si, é um momento oportuno para fazer uma auditoria da alma. É o dia determinado como sendo o do nascimento de Jesus Cristo, a natividade da esperança.


São quase dois milênios de comemoração. Para se ter uma ideia, a pintura mais antiga da natividade, representando Maria, é do século II e está nas catacumbas de Priscila, em Roma.


Embora possa ter sido cooptado em parte pelo capitalismo, o verdadeiro significado do Natal permanece aceso no coração de incontáveis pessoas. Todos temos essa chama em nosso coração, embora às vezes a brasa esteja quase apagada sob detritos de uma vida viciosa.


O Natal não é uma data para que eu expresse a minha fé, mas para se perguntar se eu tenho tido fé; não é para demonstrar esperança, mas  para perguntar se eu não tenho me deixado abater pelo desespero; não é para distribuir dinheiro e comida para os mais pobres em caridade, mas para se perguntar se eu tenho sido caridoso; não é para colocar a melhor roupa e tentar não agir como uma besta, mas se perguntar se tem sido prudente. Enfim, não é uma data para aparecer, nem para praticar uma vez ao ano, como jogador de final de semana, mas para se questionar o que se tem feito: eu tenho sido justo, forte, comedido?


As pessoas que precisam de caridade não comem só no Natal. As tentações não aparecem só no dia 25 de dezembro. É fácil ter fé e esperança rezando dentro da igreja, mas e quando somos colocados à prova? Somos capazes de refletir e reconhecer nossas falhas? Como diz Fernando Pessoa pela boca de Álvaro de Campos, em seu Poema em Linha Reta, quem é capaz de reconhecer: “eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil (…) que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante”?


O primeiro passo da mudança é olhar-se no espelho como realmente se é. Sem saber de suas falhas ninguém muda. E há os que nutrem tais vícios como se fossem virtudes, se orgulham deles e não raro são aplaudidos.


As virtudes, como a verdade e as leis da física, porém, não são democráticas: ainda que a maioria, ou todos, as desconsiderem, existirão.


Há cerca de 2300 anos Aristóteles ensinava, em Ética a Nicômaco, que a virtude vem de um bom hábito; nós somos aquilo que fazemos repetidas vezes. Não é uma natureza, ou um ato isolado. Ser virtuoso é uma escolha que demanda tempo e esforço, além de uma constante análise de nossa conduta para saber se ela tem sido virtuosa ou viciosa.


E se cairmos mil vezes, devemos levantar mil e uma. Aprimorar-se é um trabalho constante, até porque nossa condição humana muitas vezes nos conduz aos maus hábitos.


Somos, em estado de natureza, brutos e amorais, e, em sociedade, muitas vezes imorais, antiéticos, maus, egoístas em nossos objetivos.


Temos que reconhecer nossas fraquezas, não idolatrá-las, ou usá-las como constante desculpa de nossa falha de caráter. Somos humanos, afinal,


O Natal nos lembra que Deus se fez humano, padeceu as dores da humanidade, mas também compartilhou suas alegrias, e até mesmo sua fúria, a lembrar dos vendilhões do templo. Foi amado, querido, festejado, traído, desprezado e torturado. Também por sua condição humana teve medo. Foi tentado no deserto.


E o que dizer de nós, que, apesar da centelha divina, temos muito do “barro” que nos molda? Jesus nasceu para mostrar que é possível, que apesar da plêiade de manifestações, todos caminhos levam a Roma.


Num mundo de contingências, no qual a tragédia é sempre presente, a cura é a fé e o amor. A crença na humanidade como mera biologia nos reduz ao mal essencial, à dessacralização da vida e das virtudes. Se eu sou só carne, sem alma, o que me impede de considerar a sociedade como um formigueiro? O que nos distaria da barbárie da mortandade e abuso de crianças, da violência indiscriminada, da mentira?


A verdade, porém, se impõe. E se nós temos pressa, porque sofremos na carne e nos sabemos mortais, Deus não tem nenhuma. É pela fé, pela esperança e pelo amor que somos curados do abismo da desesperança. Essa cura, ao alcance de todos, que há dois milênios assombra e traz o ódio daqueles que querem controlar a humanidade pelo medo.


Dante narra, na Divina Comédia, que sobre o portal de entrada do inferno está escrito: abandonai toda esperança, ó vós que entrais. Porque o inferno é isso: a ausência de esperança. A certeza de que somos apenas aquilo ali, que estamos destinados à dor e, ao sofrimento, a sermos dominados e controlados por diabólica autoridade.


Foi a esperança, a fé e o amor de Winston que o Grande Irmão aniquilou no livro 1984, de Orwell. Pessoas atomizadas, isoladas em si mesmas, com medo de tudo e umas das outras, incapazes de confiar, são a matéria com que totalitarismos e ditaduras são construídos.


Com que terror imperadores viam mártires da fé sem medo da tortura, da violência e da morte. Que  mortal cabeça coroada pode competir com isso? Dos Herodes passados aos modernos, nenhum.


Charles Dickens, que escreveu tão belas histórias, nos presenteou com Um Conto de Natal, no qual um avarento e materialista Scrooge é visitado pelos espíritos do Natal passado, presente e futuro. Muitas cenas o fizeram refletir, mas o que abala o seu coração foi ver o triste futuro do pequeno Timmy. Como o centurião romano que procurou Jesus em busca da cura para seu servo idumeu, Scrooge abre a porta do seu coração à virtude pela caridade, que é o amor ao próximo. A caridade abre espaço para a esperança, e a esperança para a fé.


Sozinhos não somos nada.


Há uma bela história, cujo autor desconheço, no qual o protagonista sonha que andava na praia com Jesus e no céu passava cenas de sua vida. Ao olhar para trás, ele vê que em alguns momentos em vez de dois pares de pegadas, há apenas um, e questiona: “Senhor, quando escolhei Te seguir disse que nunca estaria só, mas vejo que nos momentos mais difíceis da minha vida caminhei sozinho”. E Jesus respondeu: “Meu filho, nunca o abandonei. Quando viu apenas um par de pés na areia, é porque eu o carreguei em meus braços”.


Esse é o Natal: o momento em que devemos refletir sobre nossas condutas, se temos sido virtuosos, ajustarmos nossas ações por mais um ano e, quando fraquejarmos, porque certamente fraquejaremos, lembrarmos que Deus se fez humano, nos entende e nos fortalece.


É nEle que devemos buscar forças para continuarmos virtuosos quando as nossas falharem. Não porque queremos o céu, mas porque é o certo a ser feito. Não só no dia 25 de dezembro, mas em todos os dias do ano.


Feliz Natal.