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A CORAGEM DE JOÃO BATISTA E OS HERODES MODERNOS

Eduardo Perez
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A CORAGEM DE JOÃO BATISTA E OS HERODES MODERNOS


Hoje peço vênia aos amigos para tratar de um tema que foge ao laicismo típico, embora, particularmente, acredite que mesmo ao mais ferrenho ateu lições sejam lições. Pouco importa a veracidade histórica por trás, e rogo que esqueçam as rusgas sobre isso para ler este texto como aprouver: como história, como fábula, como parábola.


Estamos na época do Natal, a festa cristã mais celebrada pelos que comungam da fé, e até por quem não participa dela. É impossível recordar o nascimento do Redentor e olvidar sua vida, especialmente o seu calvário e daqueles que estiveram ao seu lado.


Já o nascimento de Cristo indicava a forma como seria perseguido por aquelas autoridades que, investidas pelo poder, o usavam para fins pessoais, considerando que Herodes, o Grande, rei da Judéia, ordenou a morte de todos os meninos de Belém para que não perdesse seu trono para o recém-nascido Rei dos Judeus.


Posteriormente, seu filho, Herodes Antipas, tetrarca da Galileia, teria participação direta na morte de São João Batista e de Jesus Cristo, tendo este sido entregue por Pilatos.


São João, o último profeta, anunciou a vinda do Messias e revelou a identidade de Cristo. Vivia de modo simples, encorajava a compaixão, a caridade, a honestidade e a justiça.


Em uma de suas pregações, sempre enérgicas, João acusou Herodes por sua ligação espúria com a sua cunhada, Herodíades, mulher de seu irmão Filipe, ambos seus meio-tios, o que levou o povo a acusá-los de incesto.  Além disso, tecia severas críticas públicas ao governante corrupto.


Tais pregações chegaram aos ouvidos de Herodes, que, temendo algum tipo de movimento popular que viesse a abalar sua autoridade, e irado por tais comentários, determinou a prisão do pregador.


A filha de Herodíades, Salomé, em conluio com a mãe, dançou para Antipas em uma de suas festas, em que, excitado, prometeu-lhe o que ela quisesse, tendo pedido a cabeça de São João. 


Herodes era considerado um príncipe corrompido e frívolo, que não respeitava a lei, mas apenas seus interesse. João, por sua vez, era estimado pelo povo como um profeta, e até por isso o governante, embora o tenha aprisionado, receava matá-lo (Mateus 14:5).


Não podendo, contudo, descumprir a promessa feita a Salomé, entregou em uma bandeja a cabeça do santo (Mateus 14:6-11).


Ao longo da história observamos muito mais exemplos de Herodes, Herodíades e Salomé do que de São João. Autoridades em todas as esferas, do pequeno poder ao mais alto, preocupadas em amealhar fortuna própria, explorando o povo, escarnecendo das leis humanas e divinas e praticando todo tipo de perversões e perversidades.


Essas encarnações de Herodes, além do descaso para com a lei, que alteram e interpretam à sua vontade, incorrem, para manter a tônica cristã deste texto, com sofreguidão nos sete pecados capitais.


A saber, possuem uma absurda gula, nunca satisfeita sua fome por benefícios e bens materiais, não medindo esforços para obtê-los e já cobiçando os próximos. São egoístas. Tudo o que possuem, avaramente guardam, incapazes de um ato generoso ou de caridade.


A luxúria os consome, possuídos pela sensação de poder usurpado, podendo usar e descartar seres humanos como objetos.


São soberbos, considerando-se eleitos do destino e superiores à ralé que governam, supõem-se supremos. Preguiçosos, vivem do trabalho alheio, espoliando o povo do seu suor e somente a concupiscência os faz agir. Por se saberem anões entre homens, invejam aqueles que lhes parecem melhores, ainda que em posições mais humildes. Não admitem que o outro seja feliz e livre. Daí a ira que sentem de todos os que não se curvam ao seu poder, ou que são capazes de existir fora de sua torpe esfera de influência.


Essas autoridades sentem medo o tempo todo. Sabem que estão onde estão não por mérito, mas por conveniência e conluio. O medo, como bem nos ensina o mestre Yoda, conduz ao ódio. Odeiam tudo aquilo que não podem possuir e controlar, como Herodes, pai e filho, bem demonstram: o receio de perder o trono, de ter suas vergonhas publicamente lançadas, o ódio daqueles que praticam o bem e não precisam manchar sua dignidade.


Perseguem Cristo e São João. Martin Luther King e Malala Yousafzai. Antônio Bento e Touro Sentado.Tantos conhecidos e ainda mais desconhecidos. Essas são as lições dos Herodes, antigos e modernos. 


São João, por sua vez, arrasta não só pela pregação, mas pelo exemplo. Um simples homem, vestido de pele de camelo e que se alimentava de gafanhotos e mel silvestre, fez tremer um príncipe.


João ensinou a caridade e a generosidade, exortando àquele que muito tinha que dividisse com seu irmão (Lucas 3:11). Também orientou a ser honesto (Lucas 3:13), e, às autoridades, que não se  praticasse a extorsão, ou acusasse alguém falsamente, devendo contentar-se com aquilo que era obtido com seu trabalho (Lucas 3:14).


Em resumo, sê caridoso, sê honesto, e, àqueles dotados de autoridade, instou a que não abusassem dos governados, nem se aproveitassem do cargo para obter vantagens ilícitas e humilhar os outros.


Muita razão tinha Herodes em temer João Batista! E muita razão possuem os governantes de hoje em temer todo aquele que diz a verdade.


Disse Jesus que, conhecendo a verdade, ela nos libertará. A nenhum corrupto aboletado em um trono interessa um povo de alma livre, orientado pelas virtudes, e não pelos vícios. A eles interessam os grilhões, o controle. Temem os homens livres, sempre temeram, sempre temerão.


Jesus ensinou uma lição aos poderes da terra, repetida por séculos por diversos autores, cada um ao seu modo, de que aquele que quiser liderar, deve primeiro aprender a servir. Um ensinamento clássico de que o forte empresta a força ao fraco, não devendo oprimi-lo.


Muitos sofrem continuamente, alguns com mais intensidade, o peso das arbitrariedades dos potentados, do tirano que vê em cada sombra uma ameaça, em cada pessoa uma vantagem a ser perseguida. 


Nesta noite de Natal quero especialmente dirigir minha solidariedade a um colega que sente esta dor mais recente. Traído por quem confiava, foi exposto e previamente condenado.


Teme que, por exercer sua livre expressão em um espaço privado, ilegalmente distribuída sua fala, venha a ter sua cabeça entregue numa bandeja de prata, como tantos outros o foram, repetindo a antiga história arquetípica.


Independentemente do mérito de sua fala, que não me compete julgar, deve saber que não está sozinho. Ninguém mais precisa estar só quando injustamente vitimado.


Espero que, pelo menos hoje à noite, possa rir entre as pessoas que ama, não só ele, mas todos os que são humilhados e perseguidos iniquamente. Que encontre no seu íntimo a paz para as aflições do mundo, que nunca cessarão, e na irmandade que nos une a certeza de que não será abandonado.


E, se for possível fazer um pedido extemporâneo no Natal, que o meu e de muitos seja um só: Justiça, “porque a ira do homem não opera a justiça de Deus” (Tiago 1:20)


Feliz Natal em toda a extensão do significado e que em 2018 seja renovada nossa fé por intermédio das ações.



ps - na imagem, o quadro de Giovanni Fattori (1825 - 1908), “São João Batista criticando Herodes