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A TOGA, A BECA E AS BATATAS FRITAS

Eduardo Perez
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A TOGA, A BECA E AS BATATAS FRITAS

Em janeiro de 2019 escrevi um artigo que não lembro de ter publicado sobre a importância do símbolo na vida do magistrado e do advogado e a relevância espiritual e psicológica desses elementos que apresento agora, dois anos depois.


Em janeiro de 2019 escrevi, e não sei o motivo, não publiquei um texto tratando sobre uma foto que circulou pela internet, em pose, de um conhecido advogado usando bermuda e camiseta no Supremo Tribunal Federal.


Como Deus sabe do momento de tudo, publico agora.


A foto em si, e o seu protagonista, não são debatidos neste artigo, nem alvo de comentários, servindo o retrato apenas de gatilho diante do debate que suscitou, considerando as críticas acerca da indumentária forense.


A Justiça não é uma invenção humana. Ela é um atributo da razão, ou do espírito. Uma necessidade que até mesmo animais reconhecem.


Viver em sociedade demanda leis e pessoas que as apliquem, julgando o certo e o errado. Portanto, a função de julgar existe na história da humanidade desde que se precisou resolver a primeira contenda em um grupo.


E, quero crer, não muito depois precisou-se de alguém que se dispusesse a atuar pelas partes, ofensor e acusado.


Julgar não é fritar batatas, nem o é defender uma pessoa na Justiça (embora eu particularmente não saiba frigi-las).


O ofício do magistrado é o resquício indelével de um passado sagrado num mundo moderno que se quer cartesiano.


Em outras palavras, a missão de julgar o próximo ainda é sagrada, por mais que tentem desmoralizá-la, e, por consequência, também o são as missões que dela derivam.  


Francesco Carnelutti, em sua obra, “As misérias do processo penal”, disse que “nenhum homem, se pensasse no que é necessário para julgar outro homem, aceitaria ser juiz”.


O conselho de Carnelutti em sua obra ainda é válido: é conhecendo suas limitações e sabendo-se apenas uma pessoa que o juiz se torna grande.


Julgar o próximo é uma atividade desgastante, especialmente em um país como o Brasil, com 100 milhões de processos que, mesmo tendo os juízes mais produtivos do mundo, não consegue diminuir a litigiosidade.


Essa litigiosidade é o sintoma de uma sociedade doente. Processos se avolumam porque os direitos não são respeitados, e compete sempre ao Judiciário resolver aquilo que as partes não puderam entre si ou o Estado não proveu, como a segurança.


Há esperança em quem busca o juiz: esperança de que se faça justiça, por isso malditos sejam aqueles que traem essa confiança.


O magistrado, portanto, é minúsculo como humano, sendo grande somente a sua função: o poder estatal de julgar e, mais que isso, a corrente histórica de Justiça exercida por homens e mulheres, mortais como ele, desde priscas eras.


Diz Joseph Campbell, em seu “O Poder do Mito, que “quando um juiz adentra o recinto de um tribunal e todos se levantam, não estão se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai desempenhar”. 


A toga é a veste solene do juiz, que o anula como pessoa e o recorda do peso de sua função.


Tamanha é a relevância de sua simbologia que é expressão usual entre os magistrados dizer-se que honra a própria toga.


Nessa linha recordo de uma história contada por meu professor, o juiz Adegmar José Ferreira, de um magistrado que, ao aposentar-se, fora a uma missa levando a toga que ostentara durante décadas de carreira, devidamente dobrada, dizendo que a entregava isenta de qualquer mancha.


A Justiça precisa de símbolos, não como adornos afetados de uma oligarquia corroída, mas como elementos externos vivificados pelas virtudes que representam.


Os advogados possuem sua própria veste, chamada de beca, tão sagrada para a sua profissão como a toga para o juiz. Há advogados que fazem questão de envergar sua beca com altivez, cientes de que carregam consigo a responsabilidade de buscar justiça para seus clientes.


Há notícias de advogados que faziam prender orações dentro da veste, denotando a proximidade entre a justiça e a espiritualidade. 


Rui Barbosa, cuja sabedoria é notória, advogado que era exortava seus pares a que se portassem em sua conduta tomando a Magistratura como paradigma.


Sempre presentes suas palavras na famosa “Oração aos Moços”:


“Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de Magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas idênticas no objeto e na resultante: a justiça. Com o advogado, justiça militante. Justiça imperante, no magistrado”.


A esse conselho aos causídicos, acrescenta:


“Não proceder, nas consultas, senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com  altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem”.


Em sua Oração Perante o Supremo Tribunal Federal, repetia a lição de não ser um mercador da justiça:


“Advogado, afeito a não ver na minha banca o balcão do mercenário, considero-me obrigado a honrar a minha profissão como um órgão subsidiário da justiça, como um instrumento espontâneo das grandes reivindicações do direito, quando os atentados contra ele ferirem diretamente, através do indivíduo, os interesses gerais da coletividade”.


Foram vários os conselhos de Rui Barbosa também aos juízes, tal qual o proferido em seu “Manifesto Inaugural”, de que [...] a esperança nos juízes é a última esperança. Ela estará perdida, quando os juízes já nos não escudarem dos golpes do Governo”.


Os símbolos representam essa pureza das virtudes que a humanidade, com todas suas falhas, tenta exercer pela Justiça: juízes, advogados, promotores, servidores, cada qual com sua missão.


A toga, a espada e a balança sobrevivem não aos séculos, mas aos milênios como símbolos da Justiça, mais perenes que a carne corruptível, servindo de recordatório dos mais altos ideais.


E porque a simbologia é importante existe essa vontade de destrui-la, seja retirando-a, ao dizer que são velharias do passado, seja fazendo pouco caso dos ambientes e ocasiões solenes, nos quais a alma deveria ser elevada, tornando um mero espetáculo vazio de significado.


Esses que por tudo querem excluir os símbolos da Justiça ou deles fazer piada, diminuindo a Magistratura honesta, são os mesmos que riem do nosso hino e da nossa bandeira, sempiternas recordações do Brasil que queremos, túmulo de nossos avós e berço de nossos filhos.


Os emblemas da Justiça não podem ser banidos sem um preço muito caro para a nação, que lentamente se dá conta de tudo o que perdeu com a proposta sedutora daqueles que prometeram prazeres em troca do povo abandonar suas virtudes.


Essas promessas nos entregaram um país dilapidado, violento e perdido, mas que já fora preconizado há mais de cem anos por Rui Barbosa, que dizia:


“A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade [...] promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas." (Requerimento de Informações sobre o Caso do Satélite - II). 


A injustiça interessa apenas aos oportunistas, aqueles para quem dobrar a justiça é um grande negócio, ainda que o preço seja o sangue e as lágrimas dos humildes.


Hoje, mais do que nunca, o povo clama por retomar o que foi perdido. Prova inconteste disso é a bandeira do Brasil estampada em sacadas, carros, roupas, tremulando solenemente em suas cores como lembrança do que fomos e promessa do que podemos ser.


Tal qual o pavilhão nacional, precisamos dignificar a Justiça, preenchendo seus símbolos de vida e afastando a ritualística vazia e inútil, a submissão aviltante, o patrimonialismo, ou a promessa progressista de que julgar é fritar batatas.


Como advogado que fui por quase dez anos, e juiz por oito (à época, hoje dez), afirmo: não é, nem nunca será.