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BEM-VINDO A 1983: CENSURA, TOTALITARISMO E HEGEMONIA CULTURAL

Eduardo Perez
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BEM-VINDO A 1983: CENSURA, TOTALITARISMO E HEGEMONIA CULTURAL

Censura ao presidente dos EUA, duplipensar ético dos donos das redes sociais, banimento de aplicativos alternativos e patrulhamento ideológico. O que está acontecendo?


O mundo, especialmente o ocidental, sofreu um grande abalo em 2020 com a pandemia, o que precipitou uma divisão ideológica da população.


O ponto máximo no aspecto cultural (até agora!) foi a suspensão da conta  de Twitter do presidente dos EUA, Donald Trump, após o episódio da invasão do capitólio no início de janeiro de 2021, mostrando que 2020 foi realmente um divisor de águas.


As redes se dividiram: parte concorda com a medida, dizendo que Trump é uma pessoa de má índole incentivadora de violência e redes sociais possuem regras, e outra parte, alguns apoiadores de Trump, outros não, que isso constituiria censura e o prenúncio de regime ditatorial, ou pior, totalitário.


De todas as obras que descreveram futuros distópicos, nenhuma foi mais (in)feliz, didática e premonitória que 1984, de George Orwell.


Quem não leu, tem a obrigação de ler, porque trata bem como um fato real, como uma guerra (ou uma epidemia), pode ser utilizado para manter toda uma população refém do medo do inimigo externo, e, principalmente, do interno, quem controla tudo e que no fim do dia é quem manda em você.


A censura imposta ao presidente dos EUA deveria preocupar, especialmente porque não houve cisão democrática (ainda!) naquela que é a maior democracia do mundo, enquanto personalidades sabidamente ditatoriais continuam com livre acesso e espaço de fala em redes sociais, para, por exemplo, incentivar o povo contra Israel e dizer que não existiu o holocausto nazista que matou 6 milhões de judeus, o que, no entendimento do presidente do Twitter não é uma regra de desinformação (1).


Tais redes ocuparam em grande parte o espaço que era das antigas mídias, como rádio, jornal e televisão, tanto que elas passaram a ter contas nessas esferas para que pudessem continuar a existir.


A diferença de uso, contudo, é brutal. Enquanto com a mídia tradicional a pessoa era mera espectadora, receptora passiva de informações, nas redes sociais ela passou a opinar ativamente, acabando com o monopólio de informação e de fatos.


Por exemplo, uma situação que antigamente uma rede de televisão não quisesse que fosse a público, agora pode ser divulgada por qualquer pessoa nas redes. Há uma horizontalidade nisso, somos todos mais ou menos iguais, embora uns com mais, e outros com menos público.


E as redes sociais são estruturadas para serem viciantes. Elas querem te manter preso, é como elas ganham poder e dinheiro.


Mas parece que poucos atentaram para o fato de que essas redes são instrumentos de empresas bi ou trilionárias cujo produto… é a sua vida!


Empresas, isso não deveria surpreender, não são democráticas e possuem objetivos bem claros: poder e dinheiro.


Roger Scruton, em seu livro “O que é Conservadorismo”, trata da questão tanto do capitalismo selvagem, quanto da ausência cada vez maior da participação do povo nos seus próprios destinos. No caso do capitalismo, entende que deve haver um limite moral, que refletirá legalmente, para sua atuação e expansão, pois de outro modo o cidadão ficará à mercê de quem tem mais força, e foi justamente para evitar isso que foi criado o estado.


Já como exemplo de menor participação da população sobre a decisão dos rumos de sua vida ele cita a União Européia, formada também por burocratas que são escolhidos por um grupo e que determinará o futuro de milhões de pessoas no aspecto cultural, educacional, econômico e legal.


Que participação o indivíduo comum teve nisso, a não ser obedecer a ordens ideológicas que vieram e virão de cima e não raro contrariarão seu modo de vida e a própria lógica da existência?


Mais: que participação o cidadão comum, inclusive aquele que enche a boca ao citar tais organismos como argumento de autoridade, tem na ONU, na OMS, no FMI, na OMC e também nos vários conselhos que o Brasil possui e que são formados por pessoas escolhidas por um grupo? E, para que fique claro, tudo isso acontece “dentro das regras”.


Também é “dentro das regras” que no Oriente Médio os direitos das mulheres são limitados. Na Arábia Saudita as mulheres não podem obter passaporte ou viajar para fora do país sem a autorização de seu guardião masculino, e, na prática, sequer podem sair de casa sem ele. Pelo menos elas podem dirigir, o que foi autorizado a partir de 2018 (2).


Lá também não há idade mínima de casamento para as mulheres, embora o conselho Shura tenha em janeiro de 2019 aprovado uma proposta de idade mínima de 18 anos, com exceções a partir dos 15. A violência doméstica foi criminalizada em 2013, conquanto existam críticas  sobre sua real implementação (2).


Para que fique claro, o mencionado guardião masculino, que toda mulher deve ter e pode ser seu pai, seu irmão, seu marido, tio ou até seu filho, existe porque entende-se que ela é incapaz de tomar decisões importantes sobre sua própria vida (3).


Não custa apelar um pouco para lembrar que a escravidão já foi “dentro das regras” em muitos países, como EUA e Brasil.


Desse modo, não me parece que o argumento de que “redes sociais possuem regras” seja suficiente para dizer que essas regras são justas, adequadas e razoáveis. É um raciocínio suicida, especialmente porque quem fala isso não se põe a pensar de onde vem tais “regras”.


Por isso a questão é ainda mais complexa.


Leis, em um estado democrático de direito de verdade e não de faz-de-conta como alguns países, são um produto de debate e vontade social, refletindo o espírito da população e suas prioridades. Os legisladores são eleitos para isso e devem prestar contas do seu mandato para quem os elegeu.


E quem faz as normas das redes sociais? A resposta é evidente: as empresas que as controlam. Elas dizem quais são seus termos de serviço unilateralmente e você aceita ou não. E mudam de acordo com a conveniência. Mais que isso: transferem os poderes sobre os usuários para um censor tecnocrata qualquer, anônimo, que sem nenhum critério certo além dos “termos de serviço” e uma forte tendência ideológica de fazer justiça decidirá quem deve ou não ser punido. 


Por exemplo, uma pesquisa divulgada pela Folha de São Paulo mostra que, de maio de 2019 a junho de 2020, perfis “mais à direita” superaram em suspensões o perfis “mais à esquerda” em quatro vezes (4).


Não pensem que essas grandes companhias, as big techs, estão preocupadas com a lei, porque não parecem estar, embora possa ser um equívoco de análise. Seja aqui (5/6), ou lá fora (7), essas empresas não demonstram muita adesão ao sistema legal dos países onde atuam.


No Brasil, especificamente, redes sociais e equivalentes gostam de argumentar que estão submetidas às leis norte-americanas para simplesmente ignorar ordens judiciais.


As empresas que controlam as redes sociais são literalmente soberanas e moldam as normas como lhes melhor apetece para os negócios, limitam conteúdo, suspendem ou apagam as contas que seus censores não apreciam e simplesmente cancelam o direito de voz de qualquer usuário, sem compromisso nenhum com a imparcialidade, em sentido diametralmente oposto a um processo administrativo ou judicial que garanta o contraditório e a ampla defesa de quem é acusado.


Isso explica porque, por exemplo, um político conservador tem sua conta deletada, enquanto um líder religioso que duvida do holocausto ou um ditador de um país em frangalhos continua livre, leve e solto espalhando “ódio do bem” pelas redes sociais.


O critério de julgamento do que é ou não contrário às políticas da rede social é totalmente nebuloso, de forma que os que estão dispostos a propagar a censura não tenham nenhum pudor em dizer que determinada postagem sobre a Covid19 seja errada e leve à suspensão da conta, mas um Twitter de uma autoridade política e religiosa que nega a morte de 6 milhões de judeus em campos de concentração e estimule o ódio contra Israel não contrarie os “termos de serviço”.


Não existe objetividade, só interesse e conveniência de quem comanda, a mesma voluntariedade que se veria no líder da Coréia do Norte, onde os súditos sem liberdade são obrigados a acreditar até em unicórnios (8).


Eu gosto muito de usar o que chamo de Teoria do Superman, que todo mundo sabe que é tão poderoso que nada pode detê-lo, salvo a kriptonita. O que impede o Superman de dominar toda a Terra (o que, aliás, aconteceu na revista Filho Vermelho ou Red Son, quando caiu na União Soviética em vez dos EUA)? O que o impede de fazer o que quiser com nosso planeta é sua própria consciência, já que não existe força capaz de pará-lo.


A Teoria do Superman é aplicável às redes sociais, porque elas elaboram as regras que querem seguir, e mudam, ou ignoram, quando convém. São uma oligarquia totalitária limitada pela própria consciência, que não existe. Que o digam o grito dos mortos do holocausto e dos vitimados pelas ditaduras, como a venezuelana, que em nada parecem incomodar o Twitter.


E para piorar tudo, nos EUA existe a Seção 230, aprovada em 1996, que diz que provedores de serviço de internet, incluindo aí as redes sociais, não são considerados editores de conteúdo de terceiros, ou seja, de usuários, podendo moderar o que é postado por eles (9), como tive oportunidade de aprender com Viviane Nóbrega Maldonado, fundadora da Nextlaw (10).


É claro que pessoas como Mark Zuckberg defendem aguerridamente a Seção 230 alegando que é o que garante a liberdade de expressão, quando é justamente o contrário. As bigh techs não querem de jeito nenhum rever essa norma, que é o mínimo fundamento legal para que atuem como comandantes de um regime totalitário que permite calar qualquer dissidência, além de não responder por nenhum conteúdo.


Redes sociais hoje são tão essenciais que suprimir o acesso de alguém a elas, especialmente uma figura pública, equivale a uma “morte virtual”, muito próximo do que se tem chamado de “cultura de cancelamento”, quando há campanha para calar indivíduos que desagradem à cartilha ideológica do momento.


Quem está vibrando com a censura imposta a Donald Trump, o que ocorre com outros perfis conservadores, deve ter em mente tudo o que foi dito aqui e que podemos resumir em uma pergunta: o quanto de poder não auditável e por prazo indeterminado você está disposto a admitir que alguém tenha para controlar sua vida?


Ninguém sabe quais são as verdadeiras políticas de uso das redes sociais, que mudam constantemente e ainda admitem uma interpretação feita por empregados que ninguém sabe quem são, que usam seu próprio discernimento para anonimamente, sem consequência e sem justificativa controlar conteúdo e suspender ou cancelar contas de usuários.


A pessoa só descobre que perdeu seu perfil quando tenta acessa-lo. Não há qualquer justificativa além de “infração às políticas de uso”, cláusulas tão abertas e que permitem qualquer interpretação quanto às de regimes totalitários como os soviético e nazista, que consideravam crime tudo o que atentava contra o “espírito da revolução/ariano”.


O quanto você está disposto a fazer um buraco no mesmo bote em que todos estão só para ver quem você não gosta se afogar?


Alguém pode até se iludir acreditando que a censura que tem ocorrido segue os “termos de serviço” que proíbem o “discurso de ódio conservador”, ignorando que, além do banimento de perfis, quando as pessoas resolveram migrar para aplicativos como Signal e Parlor, as big techs se uniram para tirar de suas lojas essas opções, num claro “ou nós ou nada, plebeu”. Os donos do poder, como sempre foi, não estão dispostos a abrir espaço ou afrouxar o controle sobre você.


A liberdade de expressão é um valor caríssimo que deve ser defendido a todo custo, inclusive em favor daqueles que dizem coisas que não gostamos, porque se abrirmos mão disso, se permitirmos que esse direito fundamental seja vulnerado, então a qualquer momento ele poderá sê-lo de novo até que não seja mais um direito, mas um favor que nossos donos nos concedem e podem revogar a qualquer tempo.


Já imaginou se essas empresas decidem agir em concerto com os governos para espionar a vida do seus cidadãos? Se decidem cancelar contas e impedir que se comuniquem com o mundo, viabilizando um golpe de estado e regimes ditatoriais? Impedindo que notícias sejam livremente transmitidas e somente a versões que convém sejam autorizadas?


Voltamos aos tempos em que todos éramos espectadores, mas num patamar bem pior, porque agora somos obrigatoriamente retransmissores do que é autorizado, fazemos o trabalho de patrulhamento avidamente entregando quem não gostamos ao denunciar suas publicações, como servos fiéis que delatavam judeus, cristãos, homossexuais e ciganos aos nazistas e soviéticos, ao mesmo tempo abrindo mão de sua liberdade para se transmutarem em um abjeto e fiel cão de guarda das mutáveis e herméticas “políticas de uso”.


O capitalismo sem moral também não tem limites e facilmente a atuação das big techs pode se converter em um regime ditatorial. Para as grandes corporações não existem barreiras entre os países, salvo quando convém, e esse é o globalismo que todos podem esperar: controle, submissão e medo, conjugados com a inescapável liberação de dopamina que o uso das redes sociais causa e das quais você não consegue se desvencilhar, além do aspecto social de não querer “ficar de fora” (11).


John Donne, poeta do século XVI/XVII, já dizia que não se deve perguntar por quem os sinos dobram, pois eles dobram por todos nós, já que a morte de alguém diminui a humanidade como um todo. Da mesma forma, não celebre quando alguém é impedido de dizer o que pensa, porque o próximo pode ser você. A censura de um de nós diminui a liberdade de todos.

 

E como viramos de ano recentemente, desejo a todos um feliz 1983. Falta pouco para 1984.



REFERÊNCIAS:


(1) Presidente do Twitter diz que negar Holocausto não é regra de desinformação https://www.otempo.com.br/mundo/presidente-do-twitter-diz-que-negar-holocausto-nao-e-regra-de-desinformacao-1.2405472


(2) Saudi Arabia: 10 Reasons Why Women Flee https://www.hrw.org/news/2019/01/30/saudi-arabia-10-reasons-why-women-flee


(3) Women's rights in the Islamic world

https://www.dw.com/en/womens-rights-in-the-islamic-world/a-40714427


(4) Perfis mais à direita superam em quatro vezes total de contas mais à esquerda suspensas em rede social https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/perfis-mais-a-direita-superam-em-quatro-vezes-total-de-contas-mais-a-esquerda-suspensas-em-rede-social.shtml


(5) Facebook descumpre decisão judicial e pode ser bloqueado https://examedaoab.jusbrasil.com.br/noticias/366862873/facebook-descumpre-decisao-judicial-e-pode-ser-bloqueado\


(6) STJ mantém multa ao Facebook por descumprir ordem judicial https://tecnoblog.net/348383/stj-mantem-multa-ao-facebook-por-descumprir-ordem-judicial/


(7) Judge Warns Facebook in Approving Record $5B Fine for Alleged Privacy Violations https://www.law.com/nationallawjournal/2020/04/24/judge-warns-facebook-in-approving-record-5b-fine-for-alleged-privacy-violations/?slreturn=20210009095021


(8) Especialistas da Coreia do Norte confirmam existência de unicórnios. https://noticias.r7.com/hora-7/especialistas-da-coreia-do-norte-confirmam-existencia-de-unicornios-16062018


(9) O que é a 'Seção 230', que virou tema de debate dias antes da eleição nos Estados Unidos https://gq.globo.com/Lifestyle/Tecnologia/noticia/2020/10/o-que-e-secao-230-que-virou-tema-de-debate-dias-antes-da-eleicao-nos-estados-unidos.html


(10) https://pt.linkedin.com/in/viviane-nóbrega-maldonado


(11) O que drogas, games e redes sociais têm em comum https://saude.abril.com.br/blog/cientistas-explicam/o-que-drogas-games-e-redes-sociais-tem-em-comum/