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CARTA ABERTA AO PRESIDENTE SOBRE O PL DE ABUSO DE AUTORIDADE SELETIVO

Eduardo Perez
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CARTA ABERTA AO PRESIDENTE SOBRE O PL DE ABUSO DE AUTORIDADE SELETIVO

Sob a alegação de abuso de autoridade ameaça-se colocar no banco dos réus os juízes, promotores e policiais que ousarem aplicar a lei.

“Quando alguém vos mostrar os grandes e poderosos da terra e vos disser: Aí estão os teus amos, não lhe deis ouvidos. Se forem justos, serão vossos servidores; se injustos, vossos tiranos.“

 Félicité Robert de Lamennais



Senhor Presidente,


Tomo a liberdade de escrever ao senhor antes que tomem a minha liberdade de trabalhar, de viver e de cultivar as virtudes em um país no qual elas se tornam cada dia mais motivo de piada.


Antes de tudo, porém, deixo claro que sou filho de meus pais e neto dos meus avós, todos brasileiros, e a profissão que abracei como missão, Juiz de Direito, é  nisso tudo secundária, pois é principalmente como brasileiro que me manifesto, sem qualquer traço de política ou partidarismo. 


Ao longo do tempo, pela graça de Deus e os desígnios da Fortuna, alguns indivíduos foram alçados a uma posição que lhes permitiu mudar o rumo da História, para o bem ou para o mal.


O senhor, Presidente, é uma delas, e o ápice desse momento é agora em que deve decidir vetar ou não o Projeto de Lei que versa sobre suposto abuso de autoridade.


A sua decisão sobre o terrível projeto dirá se o Brasil tem ou não jeito, se a tradição de impunidade será finalmente rompida.


O Fórum Nacional de Juízes Criminais, do qual tenho a honra de ser participante e membro da Diretoria, lançou recente nota contra esse risco ao Estado Democrático de Direito.


Nela somos lembrados das mais de 65 mil pessoas mortas e das 60 mil mulheres estupradas em 2017, e das 2500 pessoas que perderam a vida para bandidos em latrocínios em 2016.


Acrescento a esses números mais alguns.


Em 2017, 371 policiais brasileiros perderam a vida no país (Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública), sem contar as dezenas de milhares que são feridos em combate contra o crime e ficam com sequelas permanentes. Nos Estados Unidos são cerca de 70 por ano, em uma população de 300 milhões de habitantes, contra os 200 milhões do Brasil, e em um país altamente armado. No Reino Unido, nos últimos sete anos apenas dois policiais morreram em serviço.


Para a FIESP, o Brasil perde para a corrupção anualmente cerca de 2,3% do seu PIB, algo em torno de R$ 157 bilhões. Para a ONU, em informação de 2017, seriam cerca de R$ 200 bilhões por ano desviados pelos corruptos.


Senhor Presidente, o Brasil tem sido um país no qual o crime compensa. Não só o crime violento, incluindo o tráfico de drogas, mas especialmente o chamado crime de colarinho branco, a corrupção.


Desde o Império o Brasil, na visão popular, parece possuir uma oligarquia que se mantém impermeável à justiça humana, o que veio a mudar ligeiramente com o Mensalão e, posteriormente, com a Operação Lava Jato.


Pela primeira vez o brasileiro comum teve um vislumbre de que todos podem, de fato, estar sujeitos às mesmas leis, para o bem ou para o mal, e que ações criminosas teriam consequências, fosse quem fosse o criminoso.
O Projeto de Lei que diz tratar de abuso de autoridade em verdade coloca o juiz, o promotor e o policial no banco dos réus.


Só faz garantir que alguns indivíduos nunca serão atingidos pela lei e estarão livres para agir de acordo com seus interesses, tendo por limite a própria consciência, ou ausência dela.


Senhor Presidente, como juiz uma vez tive oportunidade de ouvir em audiência duas garotas que foram estupradas por anos pelo padrasto sem que a mãe soubesse, pois eram ameaçadas. Tendo essa senhora tomado conhecimento, supostamente teria buscado a morte desse estuprador.


Quando perguntei a ambas as meninas a razão de não terem procurado a Justiça para denunciar o crime, com os olhos marejados deram-me a mesma resposta esperada: “Seu juiz, a gente é pobre. Pobre não tem justiça”.


Senhor Presidente, essa é a imagem que vige no país e que tentamos mudar. Que pobre não tem vez. Que o cidadão comum nunca será ouvido.


Curiosamente, o projeto de lei de abuso de autoridade nada fala sobre os casos de soltura de indivíduos que deveriam permanecer presos, mas estão soltos. Ao que parece, soltar não incomoda, o que incomoda é prender. E se for necessário colocar todos os facínoras na rua, pode ser que alguém esteja disposto a fazer que a sociedade pague esse preço para que a impunidade continue como regra.


Talvez possa ser visto como abuso de autoridade o cidadão ter que recorrer ao Judiciário diante da omissão do Legislativo para ver implementados direitos 30 anos após a promulgação da Constituição Federal. 


Ou então negar medicamento básico, a falta de vagas em escolas, creches e presídios. O cidadão depois de anos e anos de trabalho ter que recorrer ao Judiciário para conseguir se aposentar.


Os juízes brasileiros cuidam de 100 milhões de ações, grande parte delas decorrente justamente da omissão estatal. E nada disso é considerado abuso de autoridade.


Conforme esse malfadado Projeto de Lei, abuso de autoridade é investigar e julgar indivíduos que não querem ser investigados e julgados. Até mesmo o sucesso que foi o disque denúncia terá que ser encerrado, porque a polícia só poderá iniciar uma investigação com base em certezas.


Não é oprimindo juízes, promotores e policiais e favorecendo o criminoso, que no Brasil já tem mais direitos que as vítimas, que isso irá mudar.


Uma sociedade, qualquer sociedade, antes de garantir um direito que seja exige o dever prévio de cada um que a compõe, rico ou pobre: o de respeitar o direito dos outros.


E mais, que quem descumprir isso não permaneça impune.


A humanidade se uniu porque estava cansada de violência. Cansada de saber se naquele dia perderia sua colheita, a dignidade sexual ou a vida. Era a lei do mais forte, a lei da selva: quem mais podia, mais tinha.


O Estado veio para dizer que somos todos iguais em direitos e deveres. Que quem descumpre seus deveres deve ser punido.


A impunidade gera monstros, pessoas cujos apetites encontram limite apenas na própria consciência, que normalmente não existe. São os “coronéis” e os violentos que dominaram e dominam um país ainda iletrado, ainda carente, ainda sem rumo certo, mas que tem fé, que tem coragem e que tem esperança.


O que o Projeto de Lei de suposto abuso de autoridade oferece é a fragilização do sistema legal de responsabilidade criminalizando os agentes públicos e a institucionalização da lei do mais forte, assegurando que os criminosos não venham a responder por seus crimes.


Hoje, policiais já trabalham desmotivados e com medo. Há alto índice de doenças e suicídios na carreira.


Com os juízes, guardadas as proporções, ocorre algo semelhante. Segundo pesquisa da Associação dos Magistrados do Brasil, AMB, quase metade dos juízes já necessitou alguma vez de “intervenção médica, psicológica ou psiquiátrica por problema ou dificuldade emocional ou psíquica após o ingresso na magistratura”. 


É evidente que isso aconteceria em um país no qual é preciso lutar pelo simples direito de lutar. No qual todo o esforço para diminuir a impunidade resulta quase que inútil diante de uma política pública voltada para a irresponsabilidade, o desencarceramento de criminosos e a culpa dos agentes públicos de segurança, como se vê da narrativa criada sobre a audiência de custódia.


Novamente citando a nota do FONAJUC, recordemos o que disse aos brasileiros Antonio Di Pietro, que atuou na Operação Mãos Limpas na Itália, sobre a Operação Lava Jato: 


"A corrupção continua porque o sistema dos colarinhos brancos se “engenheirizou” e os delitos são cometidos com maior inteligência criminal. O juiz é como o coveiro: um é ativado quando a pessoa já está morta, o outro quando o crime já foi cometido. A corrupção não vai acabar enquanto houver conveniência em cometê-la. É preciso investir em prevenção, educação, dar mais recursos à magistratura e à polícia, e melhorar o sistema judiciário para agilizar os processos."


Um país justo se cria dando recursos à Magistratura e à polícia, não criminalizando o seu trabalho, não considerando-os previamente bandidos.


Sim, abusos há, e a lei deve ser aplicada ao agentes públicos que a transgredirem. No entanto, não é isso que promete esse Projeto de Lei de suposto abuso de autoridade, que ao fim e ao cabo inviabiliza a Justiça brasileira.


Não se trata de demonizar a política e os políticos, pois são essenciais para a construção de um estado adequado, e sim de apontar que medidas assim como esse projeto de lei não atendem ao interesse da população, por melhores que sejam as intenções individuais.


Disse o jurista uruguaio Eduardo Couture:


“… o juiz é a sentinela de nossa liberdade. Quando tudo se perdeu, quando todos os direitos caíram, quando todas as liberdades foram espezinhadas, quando todos os direitos foram violados, há sempre a liberdade mantida pelo juiz. Mas o dia em que o juiz tiver medo, for fraco de coração, depender de governos, de influências ou suas paixões, nenhum cidadão poderá dormir em paz, porque não haverá mais razão naquela pobre pátria tão perdida” (Eduardo J. Couture, “La buena fe en el proceso civil”, en Revista de Derecho y Ciencias Jurídicas, Perú, 1947).


Se os juízes tiverem medo, não haverá mais quem garanta direitos. A democracia não passará de uma retórica e encenaremos todos a comédia de um país que um dia quis ser grande.


Também muito feliz foi Piero Calamandrei em citação que se encaixa perfeitamente pelo momento em que passamos:


“Diria-se que para um magistrado é mais difícil manter sua independência em tempos de liberdade do que em tempos de tirania. Em um regime de tirania o juiz, se está disposto a ceder, o faz em uma única direção. A escolha é simples, servilismo ou consciência. Mas em tempos de liberdade, quando correntes políticas diferentes sopram de todos os lados, o juiz é exposto como a árvore no topo da montanha. Se o caule não é sólido, corre o risco de se curvar ao sopro de cada um os ventos” (PIERO CALAMANDREI, em El Elogio de los jueces)


O que o mundo não precisa é de juízes que se dobrem aos ventos da política.


Os juízes, aqueles que alçaram seus cargos pelo estudo e pelo mérito, estão expostos, extremamente expostos, a esses ventos. Mas estou seguro de que não nos inclinaremos. E, se sancionado esse monstruoso projeto de lei, e tivermos que escolher entre servilismo e consciência, digo de antemão por mim que a escolha já foi feita lá atrás, muito antes de minha aprovação em um concurso público, e sei que tantos outros juízes, promotores, delegados e policiais pensam da mesma forma.


Senhor Presidente, não permita que a República do Brasil se converta em um Império da Impunidade.


Está nas suas mãos, nesse momento da História, decidir se caminharemos finalmente para sermos um Brasil de todos ou se permaneceremos um Brasil de poucos.



Eduardo Perez Oliveira, brasileiro primeiro, e só depois  juiz de Direito.