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COMO LIDAR COM A TRAGÉDIA: A FRAGILIDADE HUMANA, DEUS E A FORTUNA

Eduardo Perez
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COMO LIDAR COM A TRAGÉDIA: A FRAGILIDADE HUMANA, DEUS E A FORTUNA

O ser humano em uma sociedade próspera pode se dar ao luxo de "matar a Deus" e considerar-se imortal. Mas e quando chega a tragédia?



Subitamente o mundo todo ficou em suspenso com a pandemia que o ameaça. Não o mundo, claro, a humanidade. O mundo vai bem e continuará bem, porque não depende de nós que somos criaturas que se dão a importância de criadores.


O quanto é verdade sobre o COVID-19 e o quanto é apenas medo, como na fábula da peste e do sábio Nasrudin, não se sabe ainda. 


Inegável é que a pandemia resultou em pandemônio. Cidades cujas ruas ficavam apinhadas de trabalhadores ou de turistas hoje se encontram vazias, como numa hecatombe de cinema.


Pessoas isoladas em quarentena, olhando por sobre o ombro para tentar identificar um inimigo que é, afinal, invisível. Um inimigo que nos usa de montaria para saltar de um para o outro. Então vem a desconfiança mútua. Já queremos distância, já não celebramos mais festas, as mesas solitárias das casas quando muito se ornam com dois ou três pratos.


Esse algoz que ninguém vê e que pode estar escondido mesmo dentro do melhor de nós torna-nos inúteis.


Justo nós, humanos, que nos temos em altíssima conta, modéstia às favas. Nós, que inventamos a escrita e descobrimos o fogo. Que controlamos a natureza e extinguimos nossos primos até que fôssemos a  única espécie dominante sobre o planeta. Mais de sete bilhões de vencedores que há milênios se regozijam sobre os espólios terrestres dessa batalha genética.


Somos invulneráveis em nossos arranha-céus, imortais em nossa ciência, imbatíveis em todo nosso conhecimento acumulado.


É tudo “nosso”.


Não precisamos mais de Deus, blindados que estamos contra toda a incerteza da existência. Certo?


O coronavírus veio nos lembrar que, bom, não, não está certo.


Não somos imortais, não somos imbatíveis, não somos invulneráveis. Somos frágeis enquanto indivíduos e espécie, e quanto menos reconhecermos o fato mais frágeis nos tornamos. 


Os gregos antigos, mesmo em toda sua hybris, reconheciam isso e expressaram nas tragédias, das quais recordo as famosas “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, “Édipo Rei”, “Antígona” e “Electra”, de Sófocles, e “Medeia”, de Eurípedes.


E o que é a essência da tragédia? Sintetizando de forma grosseira, trágica é a situação da qual ou não há escapatória ou qualquer opção será terrível. Na tragédia não há melhor escolha, e o indivíduo é confrontado em sua pequenez com a enormidade do destino.


Ilustrando uma situação trágica, recordemos do naufrágio do Titanic. De várias histórias, há a do milionário Benjamin Guggenheim e seu valet, Victor Giglio. Relatos de quem conseguiu sobreviver contam que, enquanto a nave afundava, Guggenheim auxiliava mulheres e crianças a entrarem nos poucos botes que haviam.


A testemunha ocular conta que, cerca de uma hora depois de ter perdido Guggenheim de vista, viu-o, e ao seu valet, vestidos formalmente, sem o colete salva-vida. Questionado, respondeu o milionário: “Nós vestimos nosso melhor e nos preparamos para afundar como cavalheiros. Eu planejo ficar e exercer o meu papel se não há botes suficientes para mulheres e crianças. Diga à minha esposa… Eu joguei o jogo do jeito certo até o fim. Nenhuma mulher será deixada a bordo deste navio porque Ben Guggenheim foi um covarde” (BARCZEWSKI, 2011. p62)


Guggenheim teve que decidir entre viver com a vergonha por ter violado os seus valores ou morrer mantendo-se fiel a eles. Não há boa escolha.


Na tragédia somos lembrados de que a ação humana não é onipotente, de que há resultados inesperados e fora do controle do agente, e que coisas más acontecem também com pessoas boas. Ninguém está imune ao destino. 


O que pode fazer alguém em um avião que está em queda? Uma sucessão de escolhas o levou até aquela nave, naquele momento. Mas não só a dele, de todas as outras pessoas, ações sobre as quais não havia qualquer controle. Como prever que o mecânico do avião trabalhou direito? Como evitar que o piloto tenha um súbito ataque cardíaco durante o vôo? A existência é formada por elementos que fogem absolutamente ao nosso controle.


Diversas linhas sugerem soluções para a tragédia.


A religião, e vamos falar de cristianismo, apresenta a proposta anti-trágica da ausência de controle e sentido fiando-se em Deus, embora atualmente se tenha muito mais a ideia de “controlar a vontade de Deus”, acreditando-se em uma doutrina da prosperidade na qual a oração se converte em pontos de fidelidade que podem ser trocados por riqueza material e opulência, em um desvirtuamento do que é confiança. A crença cristã é da certeza da salvação e do repouso em Deus. O sofrimento de Cristo durante sua Paixão não é trágico, porque é um elemento dentro do contexto geral da redenção humana e devidamente previsto e controlado pela Divindade (MURAD, 2011, p. 128)


Já o marxismo tenta adotar esse mesmo viés salvacionista, pois, enquanto o cristianismo propõe uma redenção celeste, o materialismo histórico oferta uma redenção terrena (MURAD, 2011, p. 126). A diferença é que Deus é substituído pelo Estado, ocultando que “Estado” é apenas outra palavra para o grupo de pessoas que detém o poder. Estado não é gente, ele é formado por gente, e compreender isso ilumina alguns cantos escuros da sociedade.


Duas propostas antagônicas em essência, mas com um mesmo resultado: afastar a indeterminação da existência, mas com substanciais diferenças.


Se puxar pela memória lembrará das aulas de história sobre o período do Iluminismo, idolatrado no Ocidente como a salvação do “obscurantismo” medievalista religioso.


À parte as “fake news” iluministas sobre o que realmente foi a Idade Média histórica, esse novo período apresentou a razão como resposta à indeterminação da vida. Immanuel Kant, o filósofo, resumirá bem o Iluminismo ao colocar o racionalismo como a vacina imunizadora às vicissitudes da fortuna.


O Iluminismo, à guisa de destruir o mito e a religião, prometeu à humanidade uma (impossível) era de prosperidade guiada pela razão, uma razão dogmática, o que por atrair a si o dogma já anula qualquer valor que pudesse vir a ter.


Como ensina Eduardo Gianetti, (GIANETTI, p. 19):


Pois bem, onde fica o iluminismo? A estratégia iluminista, penso, é o avesso radical do ideal estóico. Em vez de buscar a libertação da tirania dos desejos sobre o espírito dos homens, tratava-se de libertar os desejos, ou seja, insuflar e dar livre curso a certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material, e de transformar o mundo para garantir a sua máxima satisfação. O ideal iluminista reflete, em suma, uma barganha faustiana — vender a alma ao demônio em troca de poder sobre o mundo. Ele representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. A palavra de ordem é dominar a natureza. “No princípio era a ação.”.



Compramos a ideia da invulnerabilidade sem saber o preço e não imaginamos quão caro pagaríamos. Afinal, somos humanos, somos o topo da cadeia alimentar. Deus morreu e subjugamos a natureza. Não há ameaça à nossa continuidade como espécie… ou assim somos condicionados a pensar.


Enquanto na tragédia grega a hybris, ou seja, o orgulho era se opor aos deuses, sempre com resultados trágicos, a modernidade fez pior: passamos a negar a Divindade e a crer que tudo é resolvido pela vontade e pela razão.


E quando achávamos que não poderia ficar pior, vem a moda do “coach”, que nega a tragédia e a indeterminação da vida e propõe que toda a realidade pode ser controlada por cada indivíduo e que resultados negativos são frutos da falta de esforço ou de fé.


Um misto de razão dogmática e fanatismo religioso conduz à ideia de que se você desejar muito forte tudo vai dar certo. Se você quer ficar rico, deseje muito forte. Foque sua mente nisso. 


Mas será que quem propõe isso leva em consideração que os bens no mundo são escassos? Se dez pessoas seguirem o pensamento positivo “coach” querendo a mesma coisa, qual leva? A que “quiser com mais vontade”?


Há um abismo entre treinar sua alma para ser virtuosa, como ensina Aristoteles e Santo Agostinho, por exemplo, buscando a vida plena (eudaimonia) como um fim em si, do que usar a virtude como meio para atingir riqueza.


Pensamento positivo não desvia tiro, nem meteoro.


Nota-se claramente que o indivíduo é colocado como responsável por tudo aquilo que lhe acontece, sendo capaz, inclusive, de mudar o mundo. Todo o mundo.

O fenômeno do “coach” não explica suas evidentes contradições, e seus seguidores não estão muito interessados em examinar esses detalhes. Isso porque seu sucesso ressoa em uma sociedade que teme o trágico, que teme a inevitabilidade do fracasso, a decadência humana, a morte. Uma sociedade que se infantiliza em seus costumes, que busca garantias de que não existe o caos e que tudo é determinado por uma ordem, ainda que oculta.


Assim como Kant pôde desenvolver um universo racional e previsível a partir de sua rotina segura e imutável, é fácil para um agrupamento humano não sujeito a riscos diretos, como de guerras, cataclismos naturais, revoluções ou epidemias, assumir que existe uma ordem irrestrita nos eventos e a felicidade, num contexto puramente materialista, só depende da ação individual.


Para os adeptos do “pensamento positivo”, sequer se cogita a existência de situações extremas, como a de prisioneiros no campo de concentração levados às câmaras de gás; a de sobreviventes de acidente aéreo nas cordilheiras dos Andes decidindo pelo canibalismo para resistir; ou, mais recentemente, de vítimas presas em um World Trade Center em chamas tendo de escolher entre o fogo ou saltar para a própria morte.


É difícil para aqueles que estão focados em prosperidade pessoal e riqueza, ou seja, que só pensam em si, conseguirem entender o que fez São Maximiliano Maria Kolbe, que, estando em um campo de concentração nazista, ofereceu-se para morrer no lugar de um pai que chorava por nunca mais poder ver os filhos (WIKIPEDIA). Qual a prosperidade possível em um campo de concentração? Kolbe ofereceu sua vida pela vida de outro, seguindo suas virtudes na realização de uma existência plena em conformidade com sua fé. Alguma dúvida que Kolbe foi feliz, embora não no contexto “pense positivo” de ser?


E, para além de situações episódicas, é oportuno recordar que existem pessoas que vivem em situações sem controle sobre o próprio destino. É o caso de refugiados de países em guerra ou regimes ditatoriais, com o constante dilema entre permanecer sob o jugo de tiranos e sujeito a privações e talvez à morte, ou lançar-se em busca da liberdade por terrenos inóspitos, sem provisões e ferramentas, ou em balsas improvisadas, como já aconteceu amiúde em Cuba e acontece na Coréia do Norte, na Síria e na Venezuela.


A doutrinação do pensamento positivo, como fruto espúrio de doutrinas anti-trágicas, é impermeável à tragédia e promete controle e prosperidade aos seus seguidores.


É o perfeito exemplo de como a sociedade ocidental se tornou incapaz até mesmo de pensar a possibilidade do caos e do fato de que a existência não é regida por certezas de nenhuma natureza.


O ser humano que vive em uma sociedade próspera, com abundância de recursos, realmente tem motivos para acreditar que “tudo está sob controle” e que Deus é uma ficção de sociedades primitivas ou de tolos supersticiosos.


Esse cidadão é incapaz de reconhecer a impotência do ser humano porque é incapaz de ver a magnitude da Criação e a fragilidade dos planos e da ação quando tudo o que é matéria se destina a perecer.


Reconhecer a contingência da ação humana é ter de admitir a impotência e a ausência de soberania. Como bem destaca Hannah Arendt, essa ação é trágica porque imprevisível, irreversível e ilimitada (CORREIA, 2018, p. 159).


Imprevisível, porque agimos em meio a outros agentes, desencadeamos eventos que afetam a outros, assim como outros agem e nos afetam. Ninguém é protagonista do mundo e mesmo um rei é afetado pelas ações de seu mais humilde súdito. É tudo indeterminado, menos para quem é onisciente.  


Irreversível, considerando que, uma vez realizada a ação, ela não pode ser desfeita. Um dos seus produtos é o ressentimento, de que Nietzsche trata em sua obra, e que conduz não raro a uma patologia da alma, incapaz de entender o perdão porque o que foi feito não pode ser desfeito.


E ilimitada, considerando que as consequências de um ato podem durar pelo curso da humanidade. 


Diante de tudo isso, da impotência, da irreversibilidade, da incapacidade de prevermos as consequências totais de nossos atos, o que fazer? Como diria o Hamlet shakespeariano em seu famoso monólogo, sucumbir ou lutar? 


Vivemos uma situação de pandemia com a sociedade ocidental em pânico, muita gente perdida, acumulando papel higiênico e desespero em suas casas, anunciando que é o fim do mundo.


A incapacidade de entender que somos frágeis faz com que muitos inventem teorias sobre a doença, ou que prometam curá-la com pseudo-ciência ou superstição. Alguns já anunciam saber que é uma praga divina, um castigo de Deus sobre uma humanidade perdida, e outros que é uma resposta da natureza.


Todas essas reações são típicas de quem não entende a tragédia, que ninguém, absolutamente ninguém, está imune a ela. Rico ou pobre, bom ou mau, homem ou mulher.


Prova disso é que o coronavírus atacou e ataca grandes personalidades da arte, da política e do mercado financeiro. Não importa quanto poder temporal você tenha, quanto dinheiro exista na sua conta bancária, a moléstia nos nivela a todos e a única coisa que pode nos diferenciar é como iremos reagir diante da tragédia.


Agir ou não agir?


Ser ou não ser, agir ou omitir, ambos são ações e impactam no mundo.


Crer que a omissão seja uma forma de escapar aos infortúnios do destino é ilusão.


Todos conhecem, ou até reconhecem em si, quem haja se deparado com uma situação funesta e tenha se atormentado com questões como “o que eu poderia ter feito?”, “por que eu não fiz diferente?”, os dramas do ressentimento e da sensação de que é possível controlar tudo.


A resposta mais direta à pergunta do que alguém poderia ter feito para evitar uma tragédia que o atingiu, ou a alguém que ame, muitas vezes é “nada”. É tentador pensar que o controle é possível, nem que seja como exercício de precognição pretérita para fomentar um masoquismo imperdoável.


A verdade é que não há soberania na ação. O jogo começou muito antes de entrarmos em cena e continuará depois que nos formos. A existência é a oportunidade de contribuir para a soma de causas e consequências que forma a teia do real. 


É o óbolo que se paga ao destino.


Na blindada vida anti-trágica, em que o controle é possível, a ação seria o passaporte para o sucesso, seja lá o que isso signifique para cada um. Agir no mundo trágico demanda coragem.


Admitir que o pano de fundo de todo ato pode ser um mundo prenhe de caos, que toda ação é contingente e que o significado pode estar ausente é, a princípio, aterrorizante.


A pandemia de coronavírus, inegavelmente nefasta, faz com que em meio ao aumento da escuridão as luzes de corações inflamados de caridade e coragem se tornem mais nítidas.


Esse não é o primeiro momento no qual a humanidade lida com um inimigo invisível que ameaça sua existência. Considerando nossa tradição ocidental cristã, que possui registros históricos dos fatos, é prudente recordar como o tema foi tratado em cada época.


O século III d.C encontrou uma Roma destruída por uma moléstia terrível, que chegava a levar cinco mil pessoas em um único dia, tanto cristãos quanto não-cristãos. A diferença, contudo, foi como ambos os grupos reagiram (LEE, 2020).


 Os não-cristãos expulsavam seus entes queridos de casa, jogando-os ainda vivos nas estradas, acreditando evitar a propagação da doença. Pensavam primeiro em si mesmos, num instinto de autopreservação.


Já a reação cristã foi diferente, pois tomaram, os cristãos, a praga como educação e teste, segundo o historiador Dionísio, tratando dos doentes, mesmo com risco de contrair a doença. E isso de fato aconteceu, levando muitos dos que zelavam pela saúde alheia à morte.


Cuidaram dos enfermos com amor e atenção, preocupados com o próximo mais do que consigo, aceitando o risco de suas ações e vivendo conforme seus princípios, mas sem a temeridade de se entregar a um perigo imotivado por fanatismo ou vaidade.


Com isso o cristianismo se expandiu pelo exemplo para os não-cristãos que buscavam entender qual seria a fonte de tanta virtude diante do perigo.


Em todo mundo exemplos se repetem expressos nas pessoas de boa vontade, independentemente do credo.


Sobre isso, circula pela internet a seguinte mensagem em português citando alguns padres italianos, cuja fonte é o jornal italiano Avvenire (AVVENIRE):


“Eles ficam doentes e morrem como os outros, juntamente com os outros... Os padres sempre estiveram no meio das pessoas... É inevitável encontrá-los também na lista de vítimas colhidas por essa epidemia assustadora. Em algumas dioceses do norte da Itália os números são impressionantes. Até ontem, 17 de março, eram esses os sacerdotes que partiram para o Pai. Muitos eram capelãos (sic) em hospitais ou párocos nas áreas mais infectadas. O mais novo tinha 55 anos e o mais idoso 104”.


Pessoas em todo o mundo que acreditam em algo além da autopreservação estão cuidando dos que são vítimas da moléstia.


A religião imuniza alguém da tragédia? De forma alguma. Os que prometem isso incidem no mais torpe charlatanismo.


Jesus, como homem, sofreu as agruras da terra, mas também teve uma mãe, abraçou, sorriu, ajudou, perdoou e até mesmo se encolerizou diante dos vendilhões do templo.


A promessa de Cristo, para aqueles que se propõe a acreditar, não é de uma vida sem tribulações. Nunca foi. Mas é de confiança em Deus, cuja imensidão não pode ser conhecida pela humanidade e falha, ou mente, aquele que diz saber seus desígnios.


É uma promessa de vida eterna fruto de uma existência virtuosa, como a consequência clara de que a fé e a virtude conduzem à salvação, aqui ou além.


Na Parábola dos Três Talentos Jesus exorta-nos à ação, e não à inação, porque repreendido foi o servo que enterrou o seu talento, ou seja, nada fez por medo de seu senhor (Mateus 25:14–30)


A vida é indeterminada. Somente a hybris, o orgulho, é capaz de fazer com quem alguém acredite ser capaz de traçar as linhas do destino como lhe aprouver.


Shakespeare traduziu essa agonia de indeterminação na fala de Macbeth, na peça de mesmo nome (SHAKESPEARE, 2008, p. 110):


A vida não é mais que uma sombra errante , um mau ator 

Que se pavoneia e se aflige no seu momento sobre o palco

E então nada mais se ouve. É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e fúria, 

Significando nada.


É natural que em época de caos generalizado, como é esse de pandemia de coronavírus, as pessoas pratiquem atos desesperados e egoístas, pois vêem tudo o que tinham como sólido esfacelar-se e não trabalharam nada dentro de si.


Iso ocorre porque acumularam tesouros na terra, “onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam” (Mateus 6:19–34).


Não que devamos negar a prosperidade no plano material, mas essa riqueza é sempre inferior à riqueza moral e espiritual, verdadeiro motivador de nossas vidas, individual e coletivamente.


Quando o homem se vê diante da tragédia na qual todos os seus esforços são inúteis, resta somente um refúgio: a própria alma. Ela que definirá a forma como cada um irá reagir diante da inevitabilidade e da imprevisibilidade da fortuna.


Jesus foi tentado pelo inimigo no deserto, que primeiro o mandou transformar a pedra em pão, respondendo Cristo que nem só de pão vive o homem. Depois, o diabo mostrou-lhe os reinos do mundo sobre os quais poderia ter poder, redarguindo Jesus que só Deus é alvo de adoração. Por último, instou Cristo a pular da parte mais alta do templo que os anjos o segurariam. Jesus respondeu: não ponha à prova o Senhor, o seu Deus (Lucas 4:1-13).


Ensina-nos aqui que o pão só basta ao corpo, não à alma, ou seja, que é preciso trabalhar as virtudes, que todo poder é impermanente e perecível, e que o homem que imagina dominar a Deus, colocando-o à prova, está fadado ao fracasso. As provações são nossas, somente o humano é contingente.


Também o Novo Testamento nos ensina a forma de lidar com a tragédia através da história do centurião de Cafarnaum (São Mateus, 8:5-13), que inspirou o conto “Senhor, eu não sou digno…”, do opúsculo “Iazul, Contos e Lendas Orientais”, de Malba Tahan.


Conta-se que um homem ingressou no exército romano tornando-se rapidamente um centurião enviado a servir na Judeia, em Cafarnaum. Com sua esposa e filhos em Roma, morava sozinho, tendo tomado para si um servo idumeu responsável pela casa, que, contudo, veio a cair gravemente doente.


Embora pudesse o centurião dispensar esse servo e tomar para si uma dezena de outros saudáveis, empenhou-se em buscar a solução da sua moléstia ao consultar toda sorte de curandeiro, sem sucesso.


Inquieto, soube de um rabino na região capaz de fazer os cegos verem e até insuflar vida nos mortos. Como oficial romano, poderia mandar que seus homens procurassem esse rabino em cada vila e o trouxessem até ele. Contudo, despido de vaidade, partiu pelas empoeiradas estradas em busca do curandeiro capaz de salvar o adoentado idumeu.


Ao chegar a Cafarnaum, viu o rabino Jesus, pregando ao povo e realizando milagres. Emocionado, aproximou-se Marcus Lucius e disse: “Senhor, meu servo está doente”. Respondendo Cristo: “eu irei e o curarei”.


O centurião disse: “Senhor, eu não sou digno que entreis em minha casa. Dizei uma só palavra e meu servo será curado”. Admirado, disse Jesus: “Em verdade vos digo: não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel. Vai, teu servo já está curado”.


Aquele centurião preocupou-se com o próximo, um servo que, pela cultura da época, poderia ser descartado como um objeto inútil. Não prestou contas a ninguém de sua condição de oficial romano, não deu “carteirada”, não se sentiu diminuído ou vilipendiado em seu orgulho por ser um oficial do Império a sair sozinho pelas estradas em busca de um rabino curandeiro, nem foi obstáculo sua vaidade ao implorar pela vida de um desconhecido a um Cristo que apenas intuitivamente conhecia.


Um romano “pagão” bem exprimiu a essência do cristianismo: a bondade, a honestidade, a dedicação, a perseverança, a humildade, a compaixão, o Amor e a Fé, mesmo diante do inevitável.


Igual exemplo vivo de fé, ação e coragem foi o de Desmond Doss, cuja história foi contada no filme “Até o Último Homem”. Doss, cristão e pacifista, decidiu que era seu dever alistar-se no exército norte-americano para combater o nazismo e seus aliados.


Mesmo negando-se a pegar em uma arma, Doss mostrou sua verdadeira força na batalha da Escarpa de Maeda, em 5 de maio de 1945, quando os contingentes norte-americanos foram massacrados pelos japoneses.


Enquanto todos que puderam fugiram, Doss permaneceu por mais doze horas no campo de batalha, sob fogo inimigo, tratando e recolhendo os feridos, os quais descia por uma corda até a parte inferior da escarpa. Durante todo o tempo tinha só uma oração: “Senhor, por favor me ajude a salvar mais um” (SUNDAY OBSERVER).


O herói trágico não é aquele que se propõe a negar a ausência de ordem no mundo, nem aquele que se entrega cegamente ao perigo, mas quem, ciente disso, se propõe a agir, apesar das contingências da ação, da ausência de controle e soberania e da possível falta de sentido na existência.


A tragédia humaniza o indivíduo quando o coloca como um outro elemento frágil da natureza, e não como senhor e protagonista da história. 


 Exige-se maturidade para reconhecer essa situação de sujeição aos infortúnios, de que há coisas além de nosso controle, toda a maturidade que a sociedade ocidental tem negado, sedenta por auto-ajuda e gurus, na contradição de quem quer ao mesmo tempo ser dono do mundo, mas precisa de um guia para dizer o que fazer.


Fortuna ou infortúnio acontecerá de qualquer forma na vida de todos. Ninguém está imune à tragédia de existir. A questão é de como essa vida será vivida.


Em que pese a pandemia seja uma grande provação para todos, é também o momento de meditar sobre as virtudes e sobre nossa fragilidade.


Mar calmo não faz bom marinheiro. É nesse instante de crise que saberemos se tudo aquilo que aprendemos faz parte da nossa vida, se conseguiremos transferir para a realidade as virtudes essenciais a uma vida plena.


Como a igreja primitiva bem entendeu, ninguém vive sozinho. Quando chega a crise, não há diferença entre as pessoas. Nenhuma.


O dever de cada um é agir em conformidade consigo mesmo e com aquilo que cultivou.


Historicamente, nas crises ou fora dela, aqueles movidos pelo exemplo de Cristo sempre estiveram presentes para estender a mão aos seus irmãos sem julgar como pensam ou de onde vêm.


Estamos diante de um evento ainda inimaginável em termos de proporções, mas só fará sentido sair dele se for com nossa fé e união fortalecidas. A hora não é de fiar-se nos tesouros da terra, mas de acumular aqueles no céu, ou seja, de exercitar a virtude, de tornar-se alguém melhor.


Aliás, que belíssima oportunidade de refletir sobre si mesmo e o outro, sobre o mundo e o quanto realmente precisamos, um momento de ponderar se é preciso ter para ser.


Realmente, ao longo da história somente os que creem em algo além da matéria entendem como algumas pessoas deram suas vidas pelas outras. Quem só se fia na prosperidade terrena, que só vê o próprio interesse, pode até se dar bem, pode ter uma vida de prazeres, mas nunca será feliz porque nunca terá uma vida plena. E nas horas trágicas será sempre o primeiro a se desesperar.


A conclusão que se pode chegar é de que a tragédia não deve ser negada, nem, quando reconhecida, servir de obstáculo para a ação. Há dor, mas também há um convite à humanização e à maturidade, de forma que as ações do indivíduo abandonem as premissas da certeza e, depuradas na incerteza da fortuna, contribuam de forma mais significativa para o mundo que se compartilha e que perdurará para além de nós.



Referências

ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Tradução e notas de  Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

AVVENIRE. Disponível em: https://www.avvenire.it/attualita/pagine/coronavirus-i-preti-morti-emilia-lombardia

BARCZEWSKI, Stephanie. Titanic 100th Anniversary Edition: A Night Remembered. Continuum. 2011.

CORREIA, Adriano. Trágica, não absurda: sobre a ação na obra de Hannah Arendt. Princípios – Revista de filosofia. v. 25, n 48. 2018.

CAMPOS, Joyce Neves de. Ação, destino e deliberação na tragédia grega e na Ética aristotélica. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás como requisito para obtenção do grau de mestre, sob orientação da Prof. Dra. Márcia Zebina Araújo da Silva. 2012. Disponível em: htps://pos.filosofia.ufg.br/up/115/o/JOYCE_NEVES_DE_CAMPOS.pdf. 

KANT, Imannuel. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?”. Trad. Artur Mourão. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf.

LEE, Moses Y. O que a Igreja Primitiva pode nos Ensinar sobre o coronavírus. Disponível em: https://coalizaopeloevangelho.org/article/o-que-a-igreja-primitiva-pode-nos-ensinar-sobre-o-coronavirus/

MURAD, Pedro Carvalho. Humor, horror e cidade: comédia pirandelliana e contemporainedade. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). 2011. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/pedromuradtese.pdf. 

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. 2a. ed. 1992.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Trad. Rafael Rafaelli. 2008. Disponível em: http://www.dbd.puc-rio.br/shakespeare/pdfs/Rafael%20Raffaelli%20-%20Macbeth.pdf.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Millor Fernandes. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor.

SUNDAY OBSERVER. Disponível em: http://www.sundayobserver.lk/2019/06/30/“lord-please-help-me-get-one-more”-desmond-doss

WIKIPEDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maximiliano_Maria_Kolbe