É assim que acaba a liberdade, sob estrondosos aplausos
Em 2016, a tentativa de calar os juízes independentes era grande com o projeto de abuso de autoridade. O quanto isso mudou em 2019?
Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, então nada melhor para descrever a situação atual do Brasil do que uma referência cinéfila.
Quem já assistiu à série de filmes Guerra nas Estrelas (Star Wars), e quem não viu se prepare para spoiler, talvez se lembre da cena no Episódio III - A Vingança do Sith, em que o Senador Palpatine, perante o Senado intergaláctico, acusa os Jedis de tentarem derrubar a República e, em seu discurso, propõe a transformação da forma de governo em império, com ele como imperador com poderes máximos (claro), no intuito de destruir toda a ordem jedi e os seus cavaleiros.
Segue trecho de seu discurso:
"Os Jedi, e alguns dentro de nosso próprio Senado, conspiraram para criar a sombra do Separatismo usando um deles mesmos como o lider inimigo. Eles tinham a esperança de triturar a República em ruínas. (…) O atentado contra minha vida me deixou ferido e deformado, mas eu lhes asseguro que minha resolução nunca foi mais forte.
"A fim de garantir a segurança e estabilidade da nossa sociedade, esta República será reorganizada como o primeiro Império Galáctico, por uma sociedade segura e a salvo, o qual eu lhes asseguro irá durar por dez mil anos. Um Império que continuará a ser governado por este augusto corpo e um governante soberano escolhido para toda a vida. Um Império governando pela maioria, governado por uma nova constituição”.
Assim, uma república que durara 25 mil anos fora transformada subitamente em império, com os poderes concentrados na mão de um ardiloso político que, apesar dos belos discursos e das atitudes aparentemente éticas, tramara tudo nos bastidores, usando o próprio sistema a seu favor.
Ao ver esta desolação, a princesa Padmé exclama: “então é assim que morre a liberdade, sob estrondosos aplausos”.
Não se assuste. É só um filme, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, deixando claro que de maneira alguma busco comparar uma obra de ficção e seus personagens com pessoas reais, mas apenas ilustrar a fragilidade do sistema democrático em qualquer lugar e como ele pode ser facilmente sequestrado pela retórica.
No Brasil, existe uma tentativa orquestrada para frear a atuação dos juízes, intimidando-os e fragilizando as prerrogativas do cargo, que são cláusulas pétreas da Constituição e não poderiam ser mitigadas ou suprimidas.
Já há anos ocorrendo de forma velada, hoje escancara-se a intenção de impedir que os juízes possam agir dentro de sua competência jurisdicional.
Não se trata de teoria da conspiração, especialmente quando a mídia é uníssona em afirmar que o próprio presidente do Senado está interessado em projetos contrários á magistratura.
É preciso divagar muito para descobrir qual o interesse em fragilizar o Judiciário?
É evidente que, como em toda democracia, o Judiciário precisa de mecanismos de aprimoramento, reconhecendo a falibilidade humana, coisa que jamais foi negada em séculos de estudos sobre o tema.
Mas o pior dos mundos é concentrar na figura de uma pessoa, ou numa aristocracia, num grupo, o controle da produção, execução e interpretação das leis.
A tripartição de poderes foi criada para que nenhum deles se sobrepujasse sobre os demais, lembrando que o objetivo disso tudo era o de atender aos interesses da nação, ou seja, é um meio para um fim, não um fim em si mesmo.
Enquanto o Judiciário se debruçava, com mais frequência, sobre criminosos “comuns”, a interferência e fragilização da Magistratura se dava de forma mais lenta, quase inexistente, já que o status quo não era ameaçado. A partir do momento em que grandes figuras da “República” foram atingidas, tendo como marco o julgamento do Mensalão, mas, mais pungentemente, o da Lava-Jato, que se deu em primeiro grau, os ataques se tornaram não só mais frequentes, como também mais intensos.
É preciso reconhecer que o Brasil possui um histórico de impermeabilidade à aplicação da lei para algumas figuras, cujos fatos mal chegaram às raias do Judiciário e, quando chegaram, diversas vezes resultaram em prescrição, por uma legislação burocrática e leniente.
Diante da iminente alteração desse estado de impunidade, as armas do sistema se voltam agora contra os juízes e, com menor espalhafato, também aos órgãos responsáveis pela apuração e denúncia, respectivamente, a Polícia e o Ministério Publico.
Sob argumentos de que os juízes agiriam com abuso de autoridade, seriam privilegiados, tentariam controlar a República e outras falácias, busca-se votar com rapidez, até mesmo impondo o regime de urgência pelo senador Renan Calheiros, medidas que, se aprovadas, contribuirão para a ampliar a fragilidade de uma democracia já fissurada.
Os fatos estão abertos para a visualização de qualquer interessado, não se trata de ilação pessoal, e sim de fatos, como a própria imprensa tem noticiado.
Vale citar a reportagem da IstoÉ, de 20.10.2016, “Moro: projeto sobre abuso de poder por autoridade é 'atentado à magistratura’”, ou a chamada do Diário do Brasil, de mesma data, "PL280 (Cuidado!) – Projeto criminoso poderá acabar com a Lava-Jato e proteger políticos corruptos”.
Temos a matéria do site Congresso em Foco, de 26.10, “Renan declara guerra ao Judiciário e articula fim da aposentaria integral como punição para juízes”, e do Estadão, de mesma data, "Renan anuncia pacote de reação contra operação da Polícia Federal”, ou o Infomoney, de 27.10, “Renan lança ofensiva contra juízes, vira ídolo no Congresso e agrava crise Senado-Supremo”.
É de destaque, igualmente, a matéria do site Zero Hora, de 28.10, “Em confronto com Judiciário, Renan tenta emplacar aliados em órgão que fiscaliza juízes”, ou Isto É, da mesma data, "Renan articula indicações para o CNJ”.
O site do Ministério Público Federal publicou, em 9.11, matéria cujo título foi "Força-tarefa Lava Jato emite nota sobre votação de projeto de lei que modifica as regras de acordos de leniência”, versando sobre a tentativa de esvaziar o combate à corrupção no país.
E, em 14.11, o Estadão publicou matéria com o título “Renan busca aval de Temer a ações contra Judiciário”.
A situação é tão escancarada que não são mais raros os textos denunciando o incômodo que os magistrados, especialmente de primeiro grau, vêm causando aos políticos e empresários.
Veja-se que busca-se intervenção política até na nomeação para conselheiros do Conselho Nacional de Justiça, responsável, dentre outras coisas, pela aplicação administrativa de penas a magistrados e fixação de metas de todo o Judiciário nacional. Foi o CNJ, por exemplo, que regulamentou a audiência de custodia.
Segundo a imprensa, o legislativo, notadamente o mencionado senador Renan Calheiros, não oculta sua intenção de antagonizar o Judiciário e limitar a atuação dos juízes, especialmente os de primeiro grau.
Prova inconteste disso é a celeridade que dá ao projeto de Lei n. 280/2016, coincidentemente de sua autoria, que cria um diploma novo para tratar de abuso de autoridade e tem por objetivo punir o juiz por interpretar a lei fora dos interesses de alguns.
A intenção é intimidar os magistrados, promotores, delegados, policiais e até mesmo jornalistas em suas atividades, mas, essencialmente, os juízes. No foco está o primeiro grau, que é o responsável pela quase totalidade de ordens de prisões no Brasil.
É o primeiro grau, por exemplo, que cuida das Operações Lava-Jato, Metis e Eletrolão, além de incontáveis outras operações nas Justiças Estadual e Federal envolvendo grandes empresas e políticos, ex-políticos e apaniguados em geral.
Não há qualquer amparo no argumento de que haveria um abuso de autoridade generalizado por parte dos magistrados, pois, passados mais de dez anos de criação do CNJ, cerca de 72 magistrados foram punidos, dos quais 46 aposentados compulsoriamente.
Parece muito? São mais de 16 mil juízes no Brasil. Setenta e seis pessoas representam menos de 0,5% (meio por cento) do número de magistrados, e 46 é cerca de 0,25% desse montante.
O CNJ é corporativista? Não na sua formação, já que ele é composto também por promotores de justiça, advogados indicados pela OAB e cidadãos indicados pela Câmara e pelo Senado Federais.
E essas normas são suaves? Pelo contrario. A conduta do juiz é cobrada dentro e fora da profissão. Tanto a Lei Orgânica quando o Código de Ética da Magistratura mencionam que compete ao juiz “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular", de modo que ele pode ser sancionado não só por atividades relacionadas ao cargo, como também por comportamento incompatível com a dignidade que se espera.
Em tempo, é importante esclarecer que o próprio Supremo Tribunal Federal definiu que o CNJ não possui qualquer poder sobre si (ADI 3.367, rel. min. Cezar Peluso, j. 13-4-2005, P, DJ de 22-9-2006).
Mas a aposentadoria compulsória é um prêmio? Não, a aposentadoria compulsória decorre da vitaliciedade constitucional e é necessária para evitar que o juiz seja destituído do cargo conforme interesses dos titulares de poderes político e econômico.
Em outras palavras, você já parou para pensar se um juiz, como por exemplo Sérgio Moro, pudesse perder o cargo por intervenção política? Isso já aconteceu no passado, quando juízes foram perseguidos e destituídos por decidir contra os poderosos, e é preciso garantir que não ocorra novamente.
O próprio Sérgio Moro, em entrevista, chegou a mencionar que as prerrogativas da Magistratura existem em favor do cidadão e da sociedade, como de fato acontece, para evitar que o mais forte oprima o mais fraco, e é justamente porque existem essas prerrogativas que os ataques contra os juízes estão aumentando, como demonstrado.
Ou acreditam que a raiva destilada contra os “juizecos”é gratuita?
Mas o tema da aposentadoria compulsória eu abordarei em outro texto, recordando que o juiz pode, sim, perder o cargo e essa aposentadoria pode ser cassada, nos termos da legislação em vigor, pela via judicial, o que já aconteceu anteriormente.
Em outras palavras, é uma baita mentira dizer que a punição máxima de um juiz é a aposentadoria compulsória.
E qual a jogada, então? Aprovar a lei de abuso de autoridade, fragilizando a vitaliciedade do juiz, ou seja, ele vai perder o cargo se incomodar certa categoria de pessoas. A intenção escancarada é intimidar o juiz na hora de decidir uma prisão, uma interceptação telefônica, assegurando a impunidade dos corruptos e dos corruptores, dos grandes criminosos do país. Pela primeira vez o Brasil tem visto a punição de pessoas poderosas, e isso pode acabar de uma hora para a outra.
É dever recordar que o primeiro refugio do cidadão ao sofrer abuso da máquina estatal é o Judiciário, e em 99,99% junto ao primeiro grau. Para onde ele correrá quando esses magistrados forem intimidados e os que resistirem punidos e perderem seus cargos?
Sob o manto da caça aos privilégios da “casta" dos juízes, gesta-se um Estado voltado à impermeabilização da verdadeira casta que controla o país e não quer abrir mão dele.
Ah, e sobre a legitimidade popular de suas medidas, é bom lembrar que, na votação aberta pelo Senado sobre o projeto de lei de abuso de autoridade (PL n. 280/2016), gestado pelo senador Renan Calheiros, quinhentas pessoas votaram favoravelmente à proposta… e vinte e cinco mil foram contrárias. Dá para explicar a alegada legitimidade popular propalada pelo senador quando temos milhares de cidadãos contrários a uma proposta que tende a perpetuar a impunidade no Brasil?
Como disse o senador, ou melhor, imperador Palpatine, "que os inimigos do Império fiquem atentos: aqueles que desafiarem a vontade Imperial serão esmagados”.
Há jedis ainda em Tatooine, imperador, e há juízes em Berlim.
http://istoe.com.br/moro-projeto-sobre-abuso-de-poder-por-autoridade-e-atentato-a-magistratura/
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/politica/noticia/2016/10/em-confronto-com-judiciario-renan-tenta-emplacar-aliados-em-orgao-que-fiscaliza-juizes-8055447.html
http://istoe.com.br/renan-articula-indicacoes-para-o-cnj/
http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/forca-tarefa-lava-jato-emite-nota-sobre-votacao-de-projeto-de-lei-que-modifica-as-regras-de-acordos-de-leniencia
http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2016/11/13/cerco-de-politicos-a-lava-jato-e-suprapartidario/
Três contos sobre ofertar presentes podem nos dizer muito sobre o Natal.
Pensar o Natal como uma auditoria da nossa conduta no último ano e um ajuste de caminho para o ano vindouro o torna uma data sempre presente, e não um feriado no qual se come muito e se trocam presentes.