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Liberdade de papel: 5 milhões de leis em um país inerte

Eduardo Perez
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Liberdade de papel: 5 milhões de leis em um país inerte

Um dos maiores vícios do Brasil é resolver problemas apenas no papel. Cinco milhões de leis dormem sem ação em um país que todo dia pensa em novas normas.


“Abundam ladrões e salteadores quando o governo só confia em leis e decretos para manter a ordem”
Lao Tsé (601 A.C.) (1)



Após o debate sobre liberdade de imprensa em razão da recente atitude do Supremo Tribunal Federal, em abril de 2019, houve sugestão ao presidente Jair Bolsonaro para que apresentasse uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) semelhante à Primeira Emenda da Carta de Direitos norte-americana.


Esta Primeira Emenda, sobre a qual tratamos em outro texto, diz que “O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de discurso, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir  pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos” (2). 


Tal medida é mais um erro a se somar à plêiade de normas que abarrotam a burocracia mastodôntica brasileira.


A praxe tupiniquim é, sempre diante de um problema, criar novas leis e/ou criar comissões de estudo. Décadas de fracasso demonstram que essa é só mais uma forma inútil, e perigosa, de gastar o dinheiro do contribuinte.


A Constituição nacional já possui todos os elementos protegidos pela aludida Primeira Emenda em seu artigo 5º (3):


1. Liberdade de religião:  VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;


2. Liberdade de expressão: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato


3. Liberdade de imprensa:  IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;


4. Liberdade de reunião: XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;


5. Direito de petição contra o Estado: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;


Fora isso, só no mencionado artigo 5º existem setenta e oito incisos e quatro parágrafos, todos tratando dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, todos parte do núcleo duro da Constituição, que não pode ser suprimido ou mitigado de qualquer forma, salvo no advento de nova Carta (4).


Qualquer pessoa com conhecimento de Direito sabe que não precisamos de mais e mais normas. Essa é a resposta pavloviana (5) brasileira a qualquer tipo de problema, um condicionamento de décadas, quiçá séculos, acreditando que as questões se resolvem apenas colocando no papel o que se pretende, sem intenção de praticar a solução.


Exemplo disso é a própria Constituição, classificada como prolixa por ser extremamente longa, mas que não entrega ao cidadão honesto uma mísera parte daquilo que promete, em que pesem seus mais de 30 anos de promulgação.


Essa compulsão brasileira de acreditar que a criação de normas fantasiosas tende a resolver problemas reais é provada documentalmente: da promulgação da Constituição Federal, em 5.10.1988, até 9.9.2016, a União, Estados e municípios editaram mais de 5.4 milhões de novas normas (6).
Conforme esse estudo,  no período abrangido apenas 4,13% das normas não foram alteradas, e somente 45% deles trataram de temas como saúde, educação, segurança, trabalho, salário e tributação. É inacreditável o número médio de 780 normas criadas por dia no período de 26 anos.


Esse fetichismo brasileiro faz crer que o mundo responde àquilo que está no papel, sem considerar que o papel aceita tudo, até o que se faz no reservado. Essa crença, derivada em parte da ideia de verdade enquanto palavra de autoridade, engendra ideias distantes da realidade, como as de que unhas pintadas de branco estimulam a paz (7) ou que o problema da violência se resolve com postes de luz.


Tais fantasias estimulam o imaginário legislativo brasileiro, já que os legisladores surgem do povo e são influenciados pela mídia, e só repetem aquilo que vem sendo feito há décadas tendo por resultado apenas o fracasso.


No tocante à liberdade de discurso e imprensa, temos normas suficientes a respeito, inclusive mais amplas do que a sugestão norte-americana, e igualmente imutáveis, salvo o advento de nova constituição.


Precisamos, é verdade, de uma auditoria legislativa para adequar muitas leis, suprimindo, alterando ou criando novas, inclusive as que tratam de Direito Penal e Processual Penal, lenientes e favoráveis à impunidade, notadamente dos que estão em elevados cargos ou possuem poder de qualquer forma. Esse trabalho de revisitar as normas deveria ser o básico de qualquer Legislativo, mas dificilmente será encampado por quem tem poder, e dever, de fazê-lo.


O que mais necessitamos é que essas normas que já existem sejam colocadas em prática.


Prova disso, e é apenas uma em meio a inúmeras, é como os processos penais da Operação Lava-Jato, julgados por magistrados aprovados em concurso público, tramitaram de forma rápida e eficiente, tratando todos os réus de forma igual e condenando ou absolvendo independentemente do poderio político e/ou econômico do acusado.


O mesmo acontece todos os dias em razão da decisão dos milhares de juízes brasileiros, que decidem processos daqueles que não possuem foro por prerrogativa de função, ou privilegiado, aplicando adequadamente as leis que, como dito, nem sempre são as melhores.


Gize-se que o que mais precisamos são instituições que funcionem. De nada adianta criar leis que nunca serão aplicadas ou serão pervertidas por seus intérpretes para fins diversos do interesse da nação.


A esse respeito, convém extrair um trecho da obra de Anatole France (1844-1924) (9):


“Para dizer a verdade, eu não teria muito medo das más leis se elas fossem aplicadas por bons juízes. A lei é inflexível, eles dizem. Eu não acredito nisso. Não há texto que não possa ser interpretado. A lei está morta. O magistrado está vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela”. 


Também o grande Otto von Bismarck (1815-1898), ciente das limitações legais e da importância das instituições, disse que “com leis ruins e funcionários bons, ainda é possível governar. Mas com funcionários ruins as melhores leis não servem para nada”.


Ora, que as leis serão interpretadas é algo inegável. Somente a Revolução Francesa e, depois, Napoleão, em seus delírios de grandeza, pretendiam que o juiz fosse o mero repetidor da norma. A lei está morta, o magistrado, vivo. Por isso precisamos de bons juízes, e que estes sejam valorizados, o que não vem acontecendo.


Mas essa interpretação possui limites no próprio ordenamento jurídico. O essencial é que a lei seja cumprida em sua integralidade, e que os seus aplicadores não a moldem nunca aos seus desejos e interesses escusos, mesmo quando revestidos de um ar de santidade e boas intenções: ainda a melhor das intenções imposta aos outros será ditadura, a mesma que, no outro extremo, impede a lei de ser interpretada, e a da toga é sempre a pior, porque não há a quem recorrer em uma democracia.


Concluindo, o Brasil precisa abandonar o vício em leis, se desintoxicar dessa mania legiferante que acredita que basta uma norma para mudar o mundo. A realidade só é alterada por intermédio da ação. As instituições precisam funcionar. O Legislativo, o Executivo, o Judiciário, Ministério Público, as agências reguladores e toda a plêiade do pesado funcionalismo público precisa começar a seguir e a aplicar as leis que já existem.


Oportuna é a lembrança do que ensinava o historiador Tácito (56-120): “Corruptissima re publica plurimae leges”, ou seja, quanto mais corrupta for a república, mais leis ela terá. Poucas, bem poucas normas precisa uma nação fundada na ética, e isso só acontece se pararmos de construir a casa pelo telhado e nos preocuparmos com a base.


Não precisamos a todo momento reinventar a roda. É só colocarmos as que existem para rodar.


Notas:


(1) Lao Tsé. Tao Te King. Trad. Hubert Rohden. Círculo do Livro. São Paulo. 1991. p. 138
(2) Legal Information Institute. https://www.law.cornell.edu/constitution/first_amendment. Acesso em 18.4.2019, às 14h40.
“Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances”.
(3) Constituição Federal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 18.4.2019, às 15h.
(4) Art. 60. (…) § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
(5) “O condicionamento clássico consiste na interação destes componentes. A apresentação de um estímulo neutro junto com um estímulo incondicionado em inúmeras ocasiões vai transformar o estímulo neutro em um estímulo condicionado. Assim, o estímulo condicionado levará a uma resposta condicionada, similar à resposta incondicionada. Desta forma, será criada uma nova aprendizagem através da associação dos estímulos”. https://amenteemaravilhosa.com.br/pavlov-condicionamento-classico/. Acesso em 18.4.2019, às 14h
(6) Estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. https://static.poder360.com.br/2017/06/Normas-editadas-ibpt-30jun2017.pdf. Acesso em 18.4.2019, às 14h15.
(7) https://extra.globo.com/mulher/paolla-oliveira-pinta-uma-unha-de-branco-pela-paz-chega-de-violencia-12177873.html. Acesso em 18.4.2019, às 14h25
(8) “Mit schlechten Gesetzen und guten Beamten läßt sich immer noch regieren. Bei schlechten Beamten aber helfen uns die besten Gesetze nichts”. Otto Fürst von Bismarck, An Wagener, 1850  https://www.gutzitiert.de/zitat_autor_otto_fuerst_von_bismarck_thema_beamter_zitat_4680.html. Acesso em 18.4.2019, às 15h
(9) FRANCE, Anatole. La Justice civile et militaire. Chapitre : Opinions sociales, tome II. 1902. p. 118.
 “A vrai dire, je ne craindrais pas beaucoup les mauvaises lois si elles étaient appliquées par de bons juges. La loi est inflexible, dit-on. Je ne le crois pas. Il n’y a point de texte qui ne se laisse solliciter. La loi est morte. Le magistrat est vivant ; c’est un grand avantage qu’il a sur elle”.