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O MUNDO REAL X O JUIZ DE GARANTIAS: DADOS E NÚMEROS NO PAÍS DO IMPROVISO

Eduardo Perez
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O MUNDO REAL X O JUIZ DE GARANTIAS: DADOS E NÚMEROS NO PAÍS DO IMPROVISO

O juiz de garantias chega ao Brasil, aparentemente, sem planejamento. Alguém já pensou no custo humano e financeiro dessa medida?


Na véspera de Natal foi sancionada a Lei n. 13.964/19, oriunda do pacote anti-crime do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, modificado no Congresso, que, em tese, “aperfeiçoa a legislação penal e processual penal” (1).


Em princípio, a norma parece trazer poucos avanços e muitas dificuldades para que tenhamos um processo penal rápido e eficaz. A mais debatida delas é o chamado “juiz de garantias”, que a lei assim define:


Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente(…).


Não se trata só de um rearranjo de competências entre os juízes. Isso vai muito além. Repercutirá negativamente na rapidez do processo e no orçamento público, logo, no dinheiro do contribuinte.


O objetivo deste artigo não é discutir a natureza ou utilidade dessa criação (o que ficará para outra oportunidade), mas unicamente demonstrar sua inviabilidade no cenário atual, o que é irrefutável diante dos fatos.


O Brasil é o quinto maior país do mundo e o maior da América Latina, com cerca de 200 milhões de habitantes. Está dividido em 26 estados e Distrito Federal, além de  5.570 municípios espalhados em seu território continental.


Em 2017, foram computados 65.602 homicídios, uma taxa de 31,6 para cada 100 mil habitantes (2). Em 2018, essa taxa foi de 57.358, cerca de 27,5/100mil. Cerca de 490 mil veículos foram roubados ou furtados, houve 22.334 registros de roubos a carga. Cerca de 66.041 registros de violência sexual, com 81,8% das vítimas do sexo feminino e 53,8% delas tinham até 13 anos. Tivemos mais de 76 mil registros de roubos a estabelecimentos comerciais e 43 mil a residências. Roubos a pessoas foram registrados mais de 812 mil, e a instituições financeiras, 987. No total, foram feitos 1.475.978 registros de roubo (3).


Segundo matéria jornalística, em 2018 a Polícia Civil de São Paulo, o estado mais pujante do país, esclareceu apenas 4% dos crimes: de 788.405 entre homicídios, estupros, latrocínios, roubos e furtos, apenas 32.150 foram apurados, ou seja, 3,6 a cada 100 casos (4).


Nos mesmos moldes, outra matéria esclarece que, em um levantamento de 2012, 79% dos casos de homicídio haviam sido arquivados, e em apenas 19% deles foi possível oferecer denúncia. Uma pesquisa da UERJ, de 2007, apontou que apenas 14% dos homicídios registrados entre 2000 e 2005 foram resolvidos. Nos Estados Unidos, essa média, entre 1965 e 2016, foi de 66%, enquanto no Canadá foi de 84% (5).


Lembrando que um crime esclarecido não é um crime punido, já que dependerá da denúncia e do julgamento.

O país possui hoje cerca de 80 milhões de processos em tramitação para algo em torno de 18 mil magistrados, sendo 94% do acervo em primeiro grau. Ressalte-se que a Justiça Estadual representa a maioria desses juízes, por ser também a que possui maior representatividade, presente em todos os municípios brasileiros. 

Como é sabido, a quase totalidade dos processos criminais ingressa pelo primeiro grau, sendo natural que tenha mais que o dobro de trabalho do segundo (7.882 no 1º grau e 3.081 no 2º grau por magistrado) (6).

O juiz que está na base, além de uma estrutura inferior à do segundo grau, possui uma série de outras obrigações, como realização de júris, inspeções em cartórios extrajudiciais, audiências para ouvir partes e testemunhas, audiências de custódia, preenchimento de relatórios de interceptação telefônica, adoção, improbidade, inspeção a presídios determinados pelo Conselho Nacional de Justiça, penhoras e pesquisas pelos sistemas BACENJUD, RENAJUD, INFOSEG, INFOJUD, SERASAJUD e outros.

Há um déficit elevado de magistrados de primeiro grau no país, especialmente nas comarcas mais distantes dos grandes centros e de difícil acesso. Esse percentual hoje é de 19,9%, num total de 4 .494 cargos de juízes não providos (6).

Na Justiça Estadual, que acumula a maioria esmagadora dos processos, incluindo os criminais, 66% das comarcas brasileiras são de juízo único , ou seja, possuem apenas um juiz responsável por todas as cidades abrangidas pela comarca de que é titular, ou de juízo exclusivo cível ou criminal (6).  

O mesmo relatório informa que, em 2018, o Poder Judiciário recebeu 2,7 milhões de novos casos criminais, sendo que 91,3% desses processos tramitam na Justiça Estadual.

O acervo de processos criminais, isto é, os que estão tramitando e ainda não foram julgados, é de quase três vezes o número de processos novos, ou seja, quase 8 milhões.

Ainda referente a 2018, no primeiro grau a carga de trabalho por juiz é, na média, de 7.882 processos, com 1.135 processos novos no ano e 1.582 julgados.

É preciso considerar ainda que esses processos são apenas números e não refletem a complexidade das demandas postas para julgamento. Ninguém gostaria de ser tratado como mera estatística quando seu caso fosse examinado pelo juiz.

Assim, por trás dos números temos casos de adoção, de guarda de filhos, de interdição, de aposentadoria por idade e invalidez, de pedidos de medicamentos, de indenização, de liberdade, entre tantos outros. Tratar os direitos essenciais como estatística seria, no mínimo, leviano, de modo que esses números servem apenas para demonstrar a titânica carga de trabalho dos juízes e servidores de primeiro grau do Judiciário brasileiro.

Vamos fazer o comparativo com Portugal, já que lá existe também o chamado “juiz de instrução” (7), e tem sido usado como parâmetro para justificar a criação em terras brasileiras.

Portugal possui 1.743 magistrados judiciais, uma média de 17,2 a cada cem mil habitantes (8), enquanto a brasileira é de 8,1, consoante o relatório Justiça em números.

Segundo dados, Portugal saiu de 108,6 crimes registrados em média por policial em 1993 para 25,8 em 2018 (9). Talvez por isso tenha sido eleito o terceiro país mais seguro do mundo, e o mais impressionante é que em 2013 ocupava o décimo oitavo lugar (10).

Ainda no mesmo ano foram “arguidos” (11) pela Justiça lusitana 70.091 indivíduos, sendo 46.465 condenados (12).

Segundo informações transmitidas por magistrados colegas portugueses, não há comarca a mais de três horas de estrada de boas cidades, como Lisboa, Coimbra e Porto, havendo apenas dificuldade com Açores no inverno.

Compilados todos esses dados, demonstrando a disparidade entre os países, passemos à análise da viabilidade da implantação do juiz de garantias no Brasil no prazo de 30 dias, como manda a lei.

Conforme informações de juízes portugueses, desde 2014 em Portugal o juiz de instrução, aqui chamado de garantias, exerce apenas essa função, sem cumular com nenhuma outra, o que vai ao encontro do que disse o promotor de justiça bandeirante, o Doutor Edilson Mougenot Bonfim, em sua página no Instagram (13), qual seja, de que os defensores do juiz de garantias ao comparar com modelos europeus cometem uma falácia ao não informar que não há cumulação de funções, tal qual se pretende no Brasil, assoberbando o magistrado.

A ideia de quem defende o juiz de garantias é que os magistrados existentes no primeiro grau passem a cumular também as funções de juiz de garantias, em conformidade com o que diz a nova lei no parágrafo único do art. 3º-D: “Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo”.

A esse respeito manifestou-se o Ministro da Justiça, Sérgio Moro (14):


“Leio na lei de criação do juiz de garantias que,nas comarcas com um juiz apenas (40 por cento do total),será feito um "rodízio de magistrados" para resolver a necessidade de outro juiz.Para mim é um mistério o que esse "rodízio" significa.Tenho dúvidas se alguém sabe a resposta”.


Veja que não existe a proposta de se criar juiz de garantias, mas só cumular os magistrados de mais trabalhos, em comarca distinta de onde atuam, com evidente prejuízo em todos os processos, os seus e os da outra comarca.

Façamos um breve exercício de viabilidade usando situações concretas.

Imaginemos a comarca de Afuá, no Pará. Conforme relatos, para acessar a cidade é preciso ir de avião até Macapá e de lá pegar um barco que, em seis horas, o deixará no município. Chaves, a cidade próxima, em época de inverno amazônico é quase inacessível.

Aviões disponíveis, só os de quatro lugares, aterrizando no campo de gado. Em época de eleições as urnas seguem em lombo de cavalo.

Na região do baixo Amazonas não é diferente: dificílimo acesso e nenhum conforto. Os municípios da região da Transamazônica são acessíveis por via sem qualquer pavimentação. Na época não chuvosa, é poeira, e, no inverno amazônico, é lama que atola até caminhão de grande porte.

Recordo-me de há alguns anos ter lido um relato sobre a comarca de São Félix do Xingu, também no Pará, que englobaria 84 mil quilômetros quadrados, com vilas a 250 km da sede, que para serem acessadas pelo oficial de justiça tomavam três dias de viagem, e outras, no inverno, nas quais só se chega de avião.

Em matéria de 2014, relata-se a visita de justiça itinerante a comunidades que nunca tiveram acesso ao Judiciário e o faziam pela primeira vez (15).

A realidade do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo e de Brasília é terrível: péssimas estradas, condições de trabalho precárias, falta de recursos materiais e humanos e insegurança são apenas alguns aspectos.

Considerando que as comarcas mais distantes dos grandes centros são as que ficam mais tempo vagas, é de se esperar que uma parcela considerável delas esteja sem juiz titular, apenas com algum magistrado de outra comarca em substituição. Há casos em que o juiz chega a responder por três ou mais comarcas diferentes, não sendo raro que responda por duas.

E falamos de um país de dimensões continentais, de forma que o magistrado fica, sozinho, responsável por uma extensão territorial de milhares de quilômetros, maior talvez que alguns países europeus.

No cenário atual, o Judiciário brasileiro ainda é lento, embora tenha os juízes mais produtivos do mundo (16), porque o volume de processos que chega anualmente é grande, o sistema processual é moroso, com muitos recursos, por exemplo, e a solução nem sempre é possível, porque o condenado foragiu, porque o executado não tem patrimônio ou o oculta e tantos outros óbices.

Isso considerando que, como dito, a maioria dos crimes não é sequer solucionada, ou seja, não se descobre quem praticou. Quando se descobre, nem todos geram processo.

Em muitos casos a vítima sequer procura a autoridade policial para registrar o ocorrido, por exemplo em casos de furto, roubo, invasão de domicílio. Nas ocorrências de violência contra a mulher é muito comum que se deixe de registrar, por afeto ou medo do criminoso, ficando casos de agressão e estupro totalmente fora da estatística.

Também desaparecimentos, que podem ser homicídio ou tráfico de pessoas, não são considerados para fins de estatística criminal.

Note-se que a cifra de crimes registrados é uma parcela dos crimes que realmente acontecem, e parcela menor ainda aporta ao Judiciário. Mesmo assim, foram mais 2,6 milhões de novos casos criminais em 2018.

O volume de trabalho sobre os juízes brasileiros é desumano. Os números falam por si. Em recente pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), 85,9% dos magistrados brasileiros concordam muito que os juízes estão mais estressados hoje do que no passado (17).

Ainda, 79,3% concordam muito que os casos de depressão, síndrome do pânico, crises de ansiedade e suicídio são hoje mais frequentes, como de fato o são. Mais de 47% dos juízes de primeiro grau necessitaram de intervenção médica, psicológica ou psiquiátrica por problema ou dificuldade emocional ou psíquica após o ingresso na Magistratura. No segundo grau esse número cai para 36,8% e nos Tribunais Superiores, como Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho, esse número é de apenas 14,3%.

A função do juiz é, evidentemente, essencial em qualquer sociedade regulada pelo direito. Quem espera a resposta de uma ação quer que ela seja rápida e proferida por um magistrado que tenha lido e examinado seu processo com calma. Além das partes do processo, para a sociedade interessa que os litígios sejam resolvidos com rapidez, que culpados sejam condenados e inocentes absolvidos.

Ninguém quer um juiz estressado, doente, que analise o processo sem qualquer zelo, apenas para cumprir metas e suprir as estatísticas. As demandas judiciais versam sobre patrimônio, liberdade, família, saúde e dignidade da nossa população, por isso tratar tudo como um jogo de tabuleiro gestado por burocratas não só é violador dos direitos e garantias fundamentais, como da própria realidade.

Somente ao criminoso, ao devedor e ao culpado interessam a demora na análise do processo, a fim de se obter prescrição ou a postergação da pena. Para quem depende da Justiça, para o honesto, para o injustamente acusado, para a sociedade, quanto antes o processo for analisado, e analisado com cuidado, muito melhor. Sem isso não há Estado Democrático de Direito, só no papel, que, como se diz, aceita tudo.

O acúmulo de processos não se resolve com “puxadinho”, eufemisticamente chamado de “ajuste de competências do juiz”. 

A crítica feita pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro sobre o tal rodízio de magistrados é muito pertinente. São 66% das comarcas estaduais, que recebem 93% dos processos criminais, que possuem um juiz só ou de juízo exclusivo cível ou criminal.

Com base nisso, pensemos rapidamente em um cenário hipotético.

O juiz A e o juiz B, ambos de vara única, são substitutos automáticos um do outro. O juiz A será o juiz de garantias da comarca do juiz B e vice-e-versa.

Enquanto juiz de garantia, o juiz não será substituto automático, que é uma eventualidade na ausência do titular, mas será o magistrado fixo dessa competência naquela comarca sem lei que tenha criado esse cargo, o que em si já é um erro.

 Logo, o juiz A será titular do cargo de juiz de garantias da comarca do juiz B e o inverso também ocorrerá.

Nas férias do juiz A, o juiz B responde por sua comarca. Só que ele já é o juiz de garantias dessa mesma comarca. Assim, ele estará impedido de instruir e julgar processos criminais ali, que terão de ser administrados por um terceiro juiz. Sua atuação se limitará a processos sem natureza criminal e às competências do juiz de garantia.

No caso de plantão regional, com o juiz A responsável por várias comarcas ao mesmo tempo durante 7 dias da semana, 24h por dia, o que é prática comum, caso venha a homologar um flagrante ou fazer uma audiência de custódia, estará impedido de julgar o processo, devendo encaminhá-lo ao seu substituto automático, juiz B, que por sua vez também é impedido, porque é o juiz de garantias. Logo, o processo deverá ser enviado a um terceiro juiz, de uma outra comarca.

A coisa vai ficando pior caso qualquer uma das comarcas venha a ficar vaga, ou ambas, ou a do juiz eventual. Todas hipóteses bastante comuns, em especial nas mais distantes regiões, onde há alta rotatividade.

Não é preciso meditar muito a respeito para entender não só a violação constitucional e legal dessa previsão, como também a inviabilidade prática, a oneração que isso causa e a lentidão na prestação jurisdicional.

O correto seria a criação do cargo de juiz de garantias, por não se tratar de uma questão de substituição eventual, e sim de verdadeira titularidade de competências, como demonstrado, sob pena de se violar o princípio do juiz natural, criando-se o juiz sobrenatural citado pelo professor Mougenot, e a prerrogativa da inamovibilidade, uma vez que um juiz não pode ser, ao mesmo tempo, titular de duas unidades judiciais.

Não se pensou, ainda, como a questão acontecerá nos tribunais de justiça e nos tribunais superiores, como aventaram em relevante artigo a juíza Renata Gil, presidente eleita da Associação dos Magistrados Brasileiros, e o promotor de justiça Renee do ó Souza (18)

Para o ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, embora a criação do juiz de garantias seja bem-vinda, não se recomendaria para os tribunais superiores, como o STJ e o próprio STF. Destaca o ministro: “No meu Tribunal, quando tenho processo crime, eu delego à primeira instância a instrução desse processo crime. Eu nunca fiz audiência de instrução, nesses 30 anos de Supremo. Sempre deleguei. Isso no meu gabinete. Agora, nos demais, além dos 10, 11 assessores, tem juízes auxiliares. Quem sabe, eles já estejam procedendo a instrução” (19)

Ao que tudo indica, embora a lei não tenha excluído nenhum tribunal ou instância, o problema estará centrado no primeiro grau.

Conforme dados apontados, para uma Justiça minimamente razoável, sem  considerar o juiz de garantias, seria preciso suprir cerca de 4.500 cargos de magistrado vagos no país, o que ainda nos deixaria abaixo da média portuguesa, de mais de 17 juízes a cada cem mil habitantes.

Agora, com o juiz de garantias, para que se tenha a possibilidade de decidir os processos  em tempo razoável, será necessário criar mais um cargo de juiz para cada vara titularizada por um único juiz, com competência exclusiva, como o modelo de Portugal, ou um ou mais cargos, ou até mesmo funções sem prejuízo da origem, de juiz de garantia por região, situado em uma comarca pólo com centralização de processos. 

Segundo experiência do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Edson Brandão, em comarca maiores seria preciso criar um cargo de juiz de garantias para cada três de juiz criminal, com vistas a equilibrar o volume de trabalho, com competência também exclusiva, como é o modelo importado da Europa.

Seria necessária, portanto, a criação de mais alguns milhares de cargos de juiz, imaginando o número de 2 mil, o que, somados aos 4.494 vagos, arredondaria para 6.500 cargos.

Coloquemos o salário médio do magistrado em R$ 33 mil, o que daria uma despesa anual de R$ 2.574.000.000,00 (dois bilhões, quinhentos e setenta e quatro milhões de reais), isso sem incluir férias, décimo-terceiro e custos previdenciários. Também não se inclui no cálculo o acréscimo de servidores necessários para cumprir as determinações judiciais, o que aumentará em muito essa conta.

Lembrando que essa remuneração de juiz é compatível e por vezes inferior ao de outras carreiras jurídicas do estado.

Se fossem contratados “apenas” os 4.500 juízes faltantes, a despesa anual seria de R$ 1.782.000.000,00 (um bilhão, setecentos e oitenta e dois milhões de reais), também sem incluir férias e décimo-terceiro.

Conforme Lei de Responsabilidade Fiscal, o teto do orçamento do Judiciário é de 6% da receita da União e dos Estados, e já  estão próximos ao limite. Tanto é fato que o discurso propagado pelos Executivos Federal e Estaduais é de austeridade, ou seja, economia.

A alternativa mais barata, como dito, seria a criação de funções de juiz de garantia regionais, remuneradas e sem prejuízo da jurisdição de origem, servindo apenas como uma solução provisória.

Curiosamente, no entanto, o Congresso cria, e o Executivo Federal sanciona, o juiz de garantias, sem levar em consideração o impacto negativo que isso representa para a sociedade, seja com relação à velocidade da Justiça, ao aumento de impunidade e o acréscimo de despesas para o contribuinte.

Assim, ou se criam mais vagas de juízes, suprindo-as, o que demoraria alguns anos, pela questão financeira e estrutural, aumentando o gasto para o contribuinte em mais de um bilhão por ano, ou se inviabiliza totalmente não só a justiça criminal, mas o Judiciário como um todo, considerando o elevado número de comarcas com apenas um juiz em todo o país.

Os números são claros e não mentem. Não é possível importar um instituto de um país e inseri-lo a marteladas no Brasil, como ja foi feito várias vezes, sem se considerar o mundo real.

Aliás, o Brasil é um país no qual tem criança se prostituindo, vendendo o corpo por uma moeda de um real, para praticar todas as modalidades de sexo (20) ou só por um almoço (21).

É de se perguntar qual seria a opinião delas a respeito do juiz de garantias.


CONCLUINDO, o Brasil é um país que registrou em 2018 cerca de 57 mil homicídios, mais de 66 mil casos de violência sexual (53% contra crianças de até 13 anos), mais de um milhão e quatrocentos roubos, mas que apura apenas um percentual muito pequeno disso, e menor ainda o que chega ao Judiciário.

Ainda assim, aos 80 milhões de processos em andamento só no ano de 2018 foram acrescidos mais 2,7 milhões de novos processos criminais, 91,3% deles tramitando na Justiça Estadual, que é a mais capilarizada e, portanto, com as comarcas mais distantes e de mais difícil acesso.

O Judiciário tem quase 4.500 vagas de juízes não providas, e conta com a média de 8 juízes para cada cem mil habitantes, sendo a média de Portugal de 17,2. Ainda que supridas todas as vagas, a média brasileira ainda estaria longe disso.

O volume de processos no primeiro grau do Judiciário é mais que o dobro do segundo, além de diversas responsabilidades adicionais do juiz que está na base, como foi mencionado no texto. O alto volume de processos, a falta de estrutura, as constantes cobranças e metas fazem com que aumente o número de casos de depressão, síndrome do pânico, ansiedade e suicídio entre os magistrados, que em relevante percentual já necessitaram de intervenção médica, psicológica ou psiquiátrica por problema ou dificuldade emocional ou psíquica após o ingresso na Magistratura.

Para atender a contento às novas disposições da lei que criou o juiz de garantias, sem prejudicar os processos em andamento, poder-se-ia imaginar, em exercício hipotético, um gasto anual com novos juízes de R$ 2.574.000.000,00 (dois bilhões, quinhentos e setenta e quatro milhões de reais), sem incluir férias e décimo-terceiro. Ou de R$ 1.782.000.000,00 (um bilhão, setecentos e oitenta e dois milhões de reais), nos mesmos moldes, se contratados tão só juízes suficientes para suprir as vagas que já estão em aberto.

A alternativa é impor mais carga de trabalho aos magistrados, com prejuízo a todos os processos em andamento e os futuros, estimulando a impunidade e o descrédito do poder do Estado  ao tornar o Judiciário mais moroso, em que pese termos os juízes mais produtivos do mundo, dada a alta carga de litigiosidade e criminalidade no país.

A possibilidade menos gravosa, e ainda assim longe do ideal, seria a criação de funções regionais de juízes de garantias assumidas por juízes sem prejuízo da jurisdição de origem, como forma de mitigar o efeito nocivo da lei sem despesas de alto vulto, mas, ainda assim, remuneradas pelo trabalho extraordinário.

Enquanto crianças se vendem por um real sem qualquer perspectiva, o “pacote anti-crime” trouxe ao réu o direito de audiência de custódia em 24h, realizada por um juiz de garantias que verificará o respeito à sua dignidade, mesmo em São Felix do Xingu ou qualquer outra comarca de difícil acesso. O problema é do juiz.

Assim, o pedófilo que pagou um real para fazer sexo com uma criança de 11 anos terá acesso a uma autoridade que zele por seus direitos muito antes dela, que talvez nunca tenha. Da mesma forma o estuprador, o homicida, o corrupto.

De nada adianta aumentar as penas e a progressão de regime se o processo penal for inviabilizado.

Quem frequenta a Vila Madalena e a Oscar Freire, em São Paulo, quem não sai de Ipanema/Leblon, no Rio de Janeiro, ou do plano piloto, em Brasília, quem nunca sujou a barra da calça de poeira ou o sapato de barro, quem nunca ficou atolado numa estrada, quem nunca olhou na cara de outro ser humano e viu a injustiça refletida em seu olho, é incapaz de compreender as necessidades de um país que clama por justiça.

O Brasil é continental, não se reduz a restaurantes caros e salas de reunião climatizadas em edifícios enfeitados com mármore e obras de arte. Pelo contrário, essas são as exceções. A regra é a carestia e o abandono, a violência e a impunidade.

Os juízes de primeiro grau estão espalhados por todos o país e realizam suas audiências olhando o jurisdicionado no olho, sem seguranças, sem cercas, sem liturgia. Que liturgia poderia exigir-se de alguém que mal tem o que comer e vestir? E esses desprovidos de tudo ainda assim procuram a Justiça como último recurso para a defesa dos seus direitos.

Em um país assim dificilmente poder-se-ia dizer que o chamado juiz de garantias seria a prioridade para se alcançar igualdade e justiça. É a varanda gourmet na palafita sem água e esgoto, à luz de lamparina.

Melhoras no sistema são muito bem-vindas, sempre, mas é preciso que aquilo que se deseja seja compatível com a realidade, sob pena da realidade vingar-se de todos nós.

Outros países adotam o juiz de garantias, ou juiz de instrução, com sucesso, indicando ser um caminho a ser seguido. Mas foram analisados dados concretos, houve planejamento antes de implantá-lo no Brasil? Ou é uma criação ideológica que mais uma vez desconsidera o mundo real? 

Não se trata de pretender um processo penal voltado para a condenação, mas um processo penal que consiga olhar para o réu, para a vítima e para sociedade sem vergonha de violar direitos individuais e difusos, até o limite máximo do que é possível fazer.

O impossível, por mais boa vontade que se tenha, ainda não é viável.

Já dizia Rui Barbosa, “a justiça, cega para um dos dois lados, já não é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda." (22).



REFERÊNCIAS:


1. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em 26.12.2019, às 17h.


2. Atlas da Violência 2019. http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em 26.12.2019, às 17h15.


3. 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em 26.12.2019, às 17h20.


4.  Polícia só esclareceu 4% dos crimes no estado de São Paulo em 2018. https://jovempan.com.br/noticias/brasil/policia-so-esclareceu-4-dos-crimes-no-estado-de-sao-paulo-em-2018.html. Acesso em 26.12.2019, às 17h20.


5. Por que homicídios ficam sem solução no Brasil. E a proposta para resolver o problema. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/30/Por-que-homic%C3%ADdios-ficam-sem-solução-no-Brasil.-E-a-proposta-para-resolver-o-problema. Acesso em 26.12.2019, às 17h30.


6. Relatório CNJ Justiça em Números - 2019. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em 26.12.2019, às 17h40.


7. LIMA, Thamirys Costa Quemel Lima. O juiz de instrução e a proteção dos direitos fundamentais no inquérito criminal. Coimbra. 2017. https://eg.uc.pt/bitstream/10316/84258/1/TESE%20DE%20MESTRADO%20-%20FINALIZADA.pdf. Acesso em 26.12.2019, às 13h.



8. PORDATA. https://www.pordata.pt/Portugal/Magistrados+judiciais+total+e+por+sexo-1703. Acesso em 27.12.2019, às 7h.


9. PORDATA. https://www.pordata.pt/Portugal/Crimes+registados+nas+pol%C3%ADcias+por+pessoal+ao+serviço-632. Acesso em 27.12.2019, às 7h20.


10. Portugal is the third safest country in the world. https://www.essential-business.pt/2019/06/14/portugal-is-the-third-safest-country-in-the-world/. Acesso em 27.12.2019, às 7h50.


11. Pessoa contra quem foi deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal e aquela que, por recair sobre si forte suspeita de ter perpetrado uma infracção cuja existência esteja suficientemente comprovada, a lei obriga ou permite que seja constituída como tal. (metainformação – DGPJ/MJ)


12. PORDATA. https://www.pordata.pt/Portugal/Arguidos+e+condenados+em+processo+crime-3470. Acesso em 27.12.2019, às 7h50.


13. Instagram Edilson Mougenot Bonfim..https://www.instagram.com/p/B6io_SEHlRR/. Acesso em 27.12.2019, às 8h05.


14. Twitter Sérgio Moro. https://twitter.com/SF_Moro/status/1210610646884257792. Acessado em 27.12.2019, às 16h20.



15. Justiça itinerante está em S. Félix do Xingu. http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/1672-Justica-itinerante-esta-em-Sao-Felix-do-Xingu.xhtml. Acesso em 27.12.2019, às 8h30.


16. Magistrados brasileiros: os mais produtivos do mundo. https://www.gazetadigital.com.br/editorias/opiniao/magistrados-brasileiros-os-mais-produtivos-do-mundo/489975. Acesso em 27.12.2019, às 9h10.


17. Quem somos a Magistratura que queremos. Pesquisa AMB. https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2019/02/Pesquisa_completa.pdf. Acesso em 27.12.2019, às 10h.


18. GIL , Renata. SOUZA, Renee do ó. O efeito iatrogênico do juiz das garantias. https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-efeito-iatrogenico-do-juiz-das-garantias/. Acesso em 27.12.2019, às 10h30.


19. ''Será bem-vinda'', diz Marco Aurélio sobre criação de juiz de garantias. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/12/26/interna_politica,816697/sera-bem-vinda-diz-marco-aurelio-sobre-criacao-de-juiz-de-garanti.shtml. Acesso em 27.12.2019, às 11h40.


20. MEDES, Felipe Zocal. Prostituição infantil e exploração de menores no nordeste brasileiro. Conteudo Juridico. https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50259/prostituicao-infantil-e-exploracao-de-menores-no-nordeste-brasileiro. Acesso em 27.12.2019, às 12h.


21. MORAIS, Normanda Araujo de et al . Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: um estudo com caminhoneiros brasileiros. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 23, n. 3, p. 263-271,  Sept.  2007 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722007000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em  27  Dec.  2019, às 12h10.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-3772200700030000


22. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 19, t. 4, 1892. p. 60. Trecho das "Razões de Apelação. Sociedades Anônimas. Questões de Nulidade".