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SERVIR E PROTEGER, JAMAIS PARASITAR

Eduardo Perez
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Crônicas

SERVIR E PROTEGER, JAMAIS PARASITAR

Generalizar nunca é bom, especialmente quando se trata de atacar um grupo de pessoas cujo trabalho é proteger e servir.


O ministro da Fazenda, Paulo Guedes, recentemente disse em palestra ao referir-se aos servidores públicos:


“O hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático”.


Mencionou que 88% da população é a favor da demissão do servidor público que não presta um bom serviço, e que nos Estados Unidos o funcionalismo fica “quatro, cinco anos sem dar reajuste e quando dá todo mundo fica ‘oh, muito obrigado’. Aqui o cara é obrigado a dar porque está carimbado e ainda leva xingamento, ovo, não pode andar de avião”.


Em alguns pontos o ministro está certo. Existem elementos que merecem correção no funcionalismo, disparidades incompatíveis com o que prevê o art. 39, §1º da Constituição Federal, que é remunerar o cargo de acordo com a responsabilidade e a complexidade.


Parece, porém, que esses casos não serão resolvidos, já que os servidores públicos foram todos jogados no mesmo balaio de sanguessugas.


É verdade, senhor ministro, que um país no qual a população almeja ser aprovada em um concurso público é um país fadado ao fracasso, porque o Estado, pelo menos em regimes livres, vive daquilo que arrecada do contribuinte. Logo, o serviço público está para a iniciativa privada como a lua para o sol.


Sinal de que não só o serviço público paga bem, mas que ele também retira o indivíduo da incerteza que muitas vezes grassa na iniciativa privada de um país em que a juventude do trabalhador é mastigada e cuspida na sua meia idade, colocando-o à disposição de um mercado de trabalho hostil. Mas isso não é um convite ao coletivismo ou ao ideário comunista, e sim uma crítica de que algo anda mal em nosso Brasil, não se podendo jogar a responsabilidade toda sobre o servidor público.


Como Vossa Excelência comparou o Brasil com os Estados Unidos, concordo que seria ótimo se fôssemos exatamente iguais àquele país, a começar pela estabilidade jurídica. A Constituição norte-americana, de 1789, possui sete artigos e foi alterada vinte e sete vezes. A brasileira, de 1988, tem 250 artigos, mais 114 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, e foi alterada 104 vezes durante seus trinta e um anos de existência. E promete não parar por aí.


Aqui nós acordamos com uma lei e vamos dormir com sei lá quantas outras, mais um código, mais uma norma, mais uma emenda constitucional. 


Seria ótimo ter estabilidade econômica, ter segurança de sair na rua sem medo de morrer, patriotismo, uma visão de vida comunitária, ofertas de trabalho e oportunidades. Nos Estados Unidos não há foro privilegiado, há respeito às leis e aos precedentes judiciais.


De fato, concordo com Vossa Excelência que devemos nos mirar nos EUA, mas não só naquilo que interessa em termos comparativos.


Não sei se lá de fato o funcionalismo fica anos sem reajuste, que inadvertidamente Vossa Excelência chamou de aumento. Explico. Veja, se há inflação, e no Brasil ela existe, o poder de compra do salário diminui dia após dia. Aumento é receber um acréscimo de salário acima da inflação. Reajuste é impedir que o seu salário seja corroído por essa mesma inflação. Sim, porque se eu ganho R$ 1.000,00, com uma inflação de 5% ao ano, no ano seguinte eu ganharei os mesmos R$ 1.000,00 se não for reajustado, só que eles estarão valendo só R$ 950,00.


A iniciativa privada passa pelo mesmo procedimento todo ano, aliás, nas negociações entre empregados e empregadores.


Isso, porém, Vossa Excelência sabe de cor e salteado, e entende que há uma diferença entre o bom e o mau servidor, entre os casos de exagero de valores e os que são justamente remunerados, ou até inferiormente.


Senhor ministro, só quem quer trabalhar ao lado de um vagabundo, no mais amplo sentido da palavra, é outro vagabundo. Conviver com pessoas de maus sentimentos e psicopatia é tóxico, com certeza. Gente inebriada de poder e que se considera, porque de fato o é, impermeável à legislação, que se limita a sancionar os pequenos. Por isso também concordo que maus servidores não devem permanecer no serviço público.


O conceito de servidor público, contudo, é amplo, e abrange do Presidente da República a senadores, deputados federais, ministros dos Tribunais Superiores, governadores, até merendeiras, recepcionistas e outros cargos. Todos que estamos vinculados ao serviço público somos servidores, e seria ótimo que os maus servidores fossem servir em outro lugar, no que me uno a 88% dos entrevistados.


Mas discordo quando Vossa Excelência diz que os servidores são todos parasitas.


Sou parente de professores de ensino público, de assistentes sociais, de policiais, escreventes e muitos outros cargos. Minha família não é de parasitas, senhor ministro. Pelo contrário, ela não suga o sangue de ninguém, deu e dá o sangue por nosso povo nos cargos que ocupa, todos titularizados após justa aprovação em concurso público. Ninguém é apadrinhado.


Tenho e tive a felicidade de trabalhar com servidores públicos exemplares, dedicados a servir e a proteger. Fazem muito mais do que aquilo para o que são pagos, e fazem com um sorriso no rosto. Não ganham jetom, não recebem qualquer sorte de benesse milionária, não lhes sobra lagosta ou água de coco às expensas do contribuinte, nem podem se aposentar depois de um par de anos de mandato. Trabalharão décadas para receber uma aposentadoria que está longe da milionária a que o senhor se refere, e tendo contribuído, de forma que essa aposentadoria não é privilégio, nem favor, é contraprestação.


Permita-me dizer um nome: Haley de Abreu Silva Batista. Talvez o senhor não lembre dela, mas foi uma professora que trabalhava em uma creche municipal em Janaúba, Minas Gerais, e que faleceu com 90% do corpo queimado depois de entrar em luta corporal com um assassino para salvar as crianças que estavam sob seus cuidados (https://pt.wikipedia.org/wiki/Heley_de_Abreu_Silva_Batista).


Talvez também não se recorde da pastora evangélica Silmara Cristina Silva de Moraes, merendeira da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo, que ajudou a esconder 50 alunos de um ataque criminoso ao barricar a porta da cozinha onde trabalhava (https://guiame.com.br/gospel/noticias/cozinheira-que-salvou-60-alunos-no-massacre-de-suzano-e-pastora.html).


Deixo de falar do esforço dos assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e médicos para atender a população carente, especialmente quando faltam medicamentos e insumos.


Quero crer também que o senhor ministro não se lembrou dos policiais que tombam às dezenas na inglória luta contra o crime no Brasil da impunidade, protegendo uma população que nem sempre lhe é cordial.


Todos esses são servidores públicos. Existem milhares pelo Brasil estendendo a mão para a população e sem os quais o país pararia.


Parece-me que não era a esses bons servidores que o senhor ministro se referia, e por isso, se me permite dizer, a generalização nem sempre é boa.


Vossa Excelência, versado que é em muitas áreas, deve conhecer a histórias dos kulaks da antiga, e graças a Deus encerrada, União Soviética.


Kulaks eram, grosseiramente resumindo, os proprietários de terra que dela extraíam seu sustento. As teorias marxistas marcaram-nos como inimigos do povo, e Lênin os classificava, o que deve ser mera coincidência, como “sanguessugas, vampiros, saqueadores do povo e aproveitadores, que engordam sobre os famintos”.


Com esse discurso repetido por anos e gestado no ódio, o genocida Joseph Stálin iniciou a chamada “desculaquização”, tomando as propriedades dos que nela trabalhavam em prol da “coletividade”. Os kulaks foram vítimas de todo tipo de violência, morte, estupro e deportação para os famosos Gulags.(https://en.wikipedia.org/wiki/Kulak).


O resultado do extermínio de quem sabia trabalhar a terra foi, além da tragédia humana e da injustiça, uma onda de fome que, segundo Aleksandr Solzhenitsyn, em seu Arquipélago Gulag, levou a seis milhões de mortes, colaborando inclusive com o trágico episódio chamado de Holodomor (https://en.wikipedia.org/wiki/Causes_of_the_Holodomor).


Poderia citar inúmeros exemplos ao longo da história que mostram que a generalização contra certas pessoas só conduz ao ódio e à violência, nunca a uma solução efetiva dos problemas apresentados.


Senhor ministro, não há necessidade de atacar a classe dos servidores públicos, à qual o senhor, como ministro, também faz parte, embora não precise desse salário para sobreviver, diferentemente de nós.


Parasitas são retirados com pinça, não com machado ou lança-chamas. Só o mau médico arrancaria a cabeça do vivente na ânsia de matar um piolho.


O Brasil tem muitos problemas mesmo com entes que enriquecem sem produção ou trabalho, como, só para citar alguns exemplos, com os especuladores, com os juros bancários entre os mais altos do mundo, com um BNDES que financiou inúmeras obras pelo orbe e nem sempre recebeu o dinheiro de volta (https://www.estadao.com.br/infograficos/economia,dossie-bndes-as-86-obras-no-exterior-financiadas-pelo-banco,689269).


Que esses aproveitadores da nação, assim como os maus servidores ,sejam punidos, punidos de verdade, não importa se com ou sem foro privilegiado. Que esses parasitas, como o senhor ministro os chamou, definhem. Mecanismos legais há, inclusive para demitir administrativamente servidores estáveis. 


Que nesses procedimentos sejam reduzidas a termo todas as imprecações, de parasitas pra baixo, mas que se abandone o discurso fácil e generalizante de culpar alguém pelos males do país. Não deu certo na Roma antiga, não deu certo na União Soviética, não deu certo na Alemanha nazista, não deu certo na revolução chinesa, não deu certo na revolução islâmica iraniana, não deu certo no cambojano Khmer Vermelho de Pol Pot. Não deu certo.


Peço que entenda esse texto como uma contribuição, senhor ministro, pois o Brasil precisa de união, de transparência, de verdade, de trabalho, não de (mais) um Judas a ser malhado para extravasar a catarse do povo afastando-o da verdade e de um país que deve cumprir a profecia de ser gigante pela própria natureza. 



Edu Perez, servidor, jamais parasita.