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Todo dia é o Dia-D

Eduardo Perez
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Todo dia é o Dia-D

Na data em que se comemora o Dia-D, operação dos Aliados contra o Eixo na Segunda Guerra Mundial, é sempre bom lembrarmos o valor da liberdade.


Dia 6 de junho de 1944 é conhecido como o Dia-D. Ao romper a manhã dessa data, os soldados nazistas que guardavam a costa da Normandia puderam ver a maior invasão anfíbia da história, formada por guerreiros de várias nações: os dias de Hitler estavam contados pelo avanço do Ocidente e as forças soviéticas.


Na noite deste mesmo dia, o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, fez um pronunciamento nacional em rádio na forma de uma oração, explicando-se perante o povo, inclusive, porque no dia anterior, quando falara da queda de Roma, teve que manter segredo sobre o Dia-D (1):


“Deus Todo-Poderoso: Nossos filhos, orgulho da nossa nação, neste dia foram postos diante de uma grande empreitada, uma luta para preservar a nossa República, nossa religião e nossa civilização, e libertar uma humanidade em sofrimento.


Eles precisarão de Tuas bênçãos. Sua estrada será longa e dura. Pois o inimigo é forte. Ele pode arremessar de volta nossas forças. O sucesso pode não vir com rapidez, mas retornaremos de novo e de novo; e sabemos que pela Tua graça e pela justiça da nossa causa os nossos filhos triunfarão.


Eles serão dolorosamente testados, de noite e de dia, sem descanso, até a vitória. A escuridão será tomada por barulho e chama. As almas dos homens serão abaladas com as violências da guerra.


Pois estes homens foram retirados dos caminhos da paz. Eles lutam não pelo prazer da conquista. Eles lutam para acabar com a conquista. Eles lutam para libertar. Eles lutam para permitir que a justiça se levante, e que haja tolerância e boa vontade entre todo o Teu povo. Eles não anseiam por nada além do fim da batalha, por seu retorno ao repouso de casa.


(…) como a estrada é longa e o desejo é grande, peço que nosso povo se dedique a uma oração contínua. A cada novo dia, e de novo após cada dia passado, permita que a oração esteja em nossos lábios invocando Tua ajuda para nossos esforços.

(…)

E, Senhor, nos dê Fé. Nos dê Fé em Ti; Fé em nossos filhos; Fé um no outro; Fé em nossa cruzada unida. (…)


Com Tua bênção, nós prevaleceremos sobre as forças profanas do nosso inimigo. Ajude-nos a conquistar os apóstolos da ganância e da arrogância racial. Conduzi-nos à salvação do nosso país, e com as nossas nações irmãs, a uma unidade mundial que significará uma paz segura, uma paz invulnerável aos esquemas de homens indignos. E uma paz que permitirá que todos os homens vivam em liberdade, colhendo as justas recompensas de seu trabalho honesto.”


Não há dúvida que a luta contra o nazismo foi uma luta do bem contra o mal. Porque acreditavam na liberdade, na vida, na igualdade, na dignidade, homens e mulheres, jovens e idosos, todas as pessoas, de todos credos, cores, visões e origens se uniram. E venceram.


Foi uma luta contra indivíduos que, por exemplo, usavam mão-de-obra escrava de pessoas presas em campos de concentração. Vítimas, a grande maioria judeus, cujos cabelos eram cortados antes de serem mortas em câmaras de gás e depois usados para fazer tecido (2), ou cuja pele ou parte do corpo serviam como objetos decorativos (3). A lista de barbaridades é enorme.


Por outro lado, também é gigantesca a lista de anjos que se puseram a combater esses demônios apenas com a fé, como Oskar Schindler, Irena Sendler, Nicholas Winton, Chiune Sugihara e tantos mais. 


Qualquer guerra é algo horrível de se ver e vivenciar. Mas a luta é necessária quando estão em jogo a vida, a liberdade e valores morais que constituem aquilo que conhecemos por humano.


Hoje, passado tão pouco tempo do fim da Segunda Guerra, há quem livremente, em ambientes acadêmicos e eventos políticos, fale em perseguir adversários, em cercear a liberdade de expressão, em pegar em armas para derrubar o estado em prol da revolução, em matar os inimigos da classe, e chame isso de justiça social.


Há setenta e cinco anos jovens eram triturados num combate contra as forças do mal, apenas para criar um ambiente de paz no qual o mal voltasse a florescer com ainda mais força.


Mas monstros não brotam da terra, eles são cultivados lentamente, às vezes por mais de uma geração. Surgem, não raro, da injustiça, mas não para combatê-la, apenas para exercitá-la em um novo viés, muitas vezes pior. É claro que vários monstros acreditam estar certos. Nem todos se assumem monstros. Aliás, a minoria o faz.


A maioria se acredita justa, correta, fazendo o que deve ser feito. Alguns até mesmo se sentem escolhidos. Ocultam seus verdadeiros sentimentos de inveja, ódio, fracasso, impotência sob um espantalho de justiça social, de compaixão pelos fracos e lançam toda a culpa em alguém ou em algum grupo.


Heinrich Himmler, um dos homens mais poderosos do regime nazista e arquiteto principal do Holocausto, ao presenciar uma execução de judeus em Minsk, no ano de 1941, foi atingido por pedaços do cérebro de uma das vítimas. Logo em seguida vomitou e desmaiou (4).


Após esse episódio, Himmler decidiu que deveria haver uma forma alternativa, mais conveniente e menos brutal para exterminar “indivíduos indesejáveis”, sendo-lhe apresentado o “caminhão de gás”: veículos especialmente adaptados como câmara de gás.


Essa técnica foi utilizada anos antes pelo regime comunista soviético para dar fim aos seus “indesejáveis”. Os caminhões eram disfarçados como de entrega de pães e os prisioneiros colocados na parte traseira. As pessoas eram mortas no trajeto até onde os corpos deveriam ser jogados. Ao chegar ao local, bastava se desfazer dos despojos (5).


Esse mesmo Himmler trocava correspondências de amor com sua esposa, com quem dividia não só a vida, mas também os ideais antissemitas. Em uma de suas mensagens ele diz: “Estou indo para Auschwitz. Beijos”, referindo-se ao notório campo de concentração (6).


Em um belíssimo texto, Hannah Arendt aponta como Adolf Eichmann, um dos criadores do Holocausto, fora examinado por meia dúzia de psiquiatras que disseram que ele era uma pessoa normal.


Aliás, um dos psiquiatras concluira que o grande carrasco nazista era mais normal do que ele mesmo, enquanto outro afirmara que o perfil psicológico de Eichmann, incluindo sua relação com a esposa, os filhos, seus pais, irmãos, irmãs e amigos eram não apenas normais, como desejáveis (7).


Os monstros não possuem garras e chifres, são normais e vicejam em ambientes nos quais ideias que aparentam bondade escondem em si o gérmen do totalitarismo, da ditadura, a banalidade do mal de que nos fala Arendt.


Há um interessante diálogo entre os personagens Julien Barneuve e Marcel, no romance “O sonho de Scipio” (8), acerca desse momento histórico:


“Quando tudo isso acabar, as pessoas tentarão culpar os alemães, e os alemães tentarão culpar apenas os nazistas, e os nazistas tentarão culpar apenas Hitler. Eles farão com que ele carregue os pecados do mundo. Mas não é verdade. Você suspeitava do que estava acontecendo, e eu também. ”


O soldado Jack Port, hoje com 97 anos de idade, esteve no Dia-D e acreditava que estava lutando na guerra que acabaria com todas as guerras. Ao ver como as coisas estão hoje, afirmou (9):


“Estou muito desapontado, e odeio deixar o mundo me sentindo dessa maneira”.


O sentimento dos que lutaram contra o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial era da necessidade de opôr a luz às trevas. Não de conquistar, mas de evitar que fossem conquistados. Uma luta pela humanidade.


Dos escritos contemporâneos dos soldados que lutaram no Dia-D pode-se contar a carta do segundo tenente Jack Lundberg, escrita para seus pais e a ser enviada em caso de morte, no qual realçava a importância do amor deles, ou o bilhete do capitão Alastair Bannerman, cujo amor da esposa e dos filhos lhe dava forças de seguir ema frente (10).


Mais do que por ideologia ou política, essas pessoas lutavam pelo amor, pela liberdade e o direito de buscar a felicidade. Mesmo que somente para os que sobrevivessem.


Não é de estranhar que aqueles que deram tanto hoje se decepcionem.


Na transmissão de rádio de sua obra “Admirável mundo novo”, em 1956, Aldous Huxley apresentou uma introdução que continha a seguinte frase: “O preço da liberdade, e mesmo da humanidade em geral, é a eterna vigilância” (11).


A prece do presidente Roosevelt em 1944 continua atual, porque nos tornamos desleixados e permitimos que a maldade se instalasse, não mais com tanques e soldados, mas como ideologias, tendências, “desconstruções” e pilhérias das virtudes.


É preciso a vigilância contínua, é preciso confiar em si e nos outros, é urgente pedir:


“Senhor, nos dê Fé. Nos dê Fé em Ti; Fé em nossos filhos; Fé um no outro (…)”.



FONTES:


(1) A Mighty Endeavor. Disponível em: https://www.fdrlibrary.org/d-day. Acesso em 6.6.2019.


(2) German car company 'used hair from Jews murdered at Auschwitz’. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/germany/4930165/German-car-company-used-hair-from-Jews-murdered-at-Auschwitz.html. Acesso em 6.6.2019.


(3)  ILSE KOCH: A BRUXA DE BUCHENWALD QUE TORTURAVA DE FORMA SÁDICA AS VÍTIMAS DO NAZISMO. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/ilse-koch-a-bruxa-de-buchenwald-que-torturava-de-forma-sadica-as-vitimas-do-nazismo.phtml. Acesso em 6.6.2019.


(4) Himmler’s Diary Gives Chilling Insights Into the Mind of One of the Most Powerful Men in Nazi Germany. Disponível: https://www.warhistoryonline.com/war-articles/himmlers-diary-gives-chilling-insights-mind-one-powerful-men-nazi-germany.html. Acesso em 6.6.2019.


(5) WALSH, Michael. Did the Soviets Use Henry Ford’s Trucks As Homicidal Mobile Gas Chambers?. Disponível: https://barnesreview.org/soviets-use-henry-fords-trucks-homicidal-mobile-gas-chambers/. Acesso em 6.6.2019.


(6) Himmler's letters revealed: 'I'm going to Auschwitz. Kisses’. Disponível: https://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-4481014,00.html. Acesso em 6.6.2019.


(7) ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalem—I. The New Yorker. 8 de fevereiro de 1963.


(8) PEARS, Iain. The Dream of Scipio. Vintage : Canada.


(9) ‘I Didn’t Want Any Medals’: Last D-Day Veterans Make Poignant Return to Normandy. The Wall Street Journal. Disponível: https://www.wsj.com/articles/d-day-veterans-and-world-leaders-converge-in-normandy-11559727001. Acesso em 6.6.2019.


(10) D-Day 75 years on: Harrowing letters & stories from soldiers. Disponível: https://bigthink.com/politics-current-affairs/d-day-stories?rebelltitem=4#rebelltitem4. Acesso em 6.6.2019.


(11) BRAVE OLD VOLUME. Disponível: https://mv-moorhead.livejournal.com/15968.html. Acesso em 6.6.2019.