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“VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?” ou O PAÍS DOS “COROCHÉIS”

Eduardo Perez
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“VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?” ou O PAÍS DOS “COROCHÉIS”

Imagine um país no qual a truculência e a burocracia de uma oligarquia oprimisse um povo e a frase mais ouvida fosse: "você sabe com quem está falando?".


Das muitas pragas que assolam o Brasil há duas bem características: doutor sem doutorado e coronel sem patente.


Não é nem algo assim muito novo. Tanto Machado de Assis quanto Lima Barreto criticavam o bacharelismo de forma contundente. Mal imaginavam eles como isso se multiplicaria a ponto de não só banir, mas também tornar criminosa, qualquer atitude ética. Na saudosa Terra de Santa Cruz viola a lei aquele que busca a lógica e a justiça.


O coronelismo, por sua vez, tem sua gênese no Império, com a criação da Guarda Nacional, donde se diz que os cargos de confiança eram distribuídos de acordo com influência e troca de favores, agraciando-se, por exemplo, grandes proprietários de terra leais com o título de coronel (NEVES).


Isso, todavia, consolidou-se e “profissionalizou-se” na República Velha.


Rapidamente, em razão da disseminação da prática, todo chefe político passaria a ser chamado de coronel popularmente, com ou sem patente. Essa teia de compromissos recíprocos que envolvia do coronel ao presidente sedimentava as relações políticas no país (CARVALHO, 1997).


À força bruta desses coronéis, que possuíam seus “soldados”, aliava-se agora a legitimidade, e também a força bruta, do governo. Assim, esses chefes locais controlavam a população pela força e pelo medo, semeando ameaças, promessas e colhendo subserviência e votos de cabresto.


O coronel típico gosta de se apresentar como alguém pio, humanitário, compassivo, que protege os mais pobres e fracos, que, curiosamente, permanecem fracos e pobres para servi-lo. Na verdade, essa distinta figura vê o povo como sua propriedade, não como gente. Daquilo que espolia dos seus subservientes servos devolve-lhes uma fatia, para demonstrar o seu caráter humano. Mas ai de quem desafiá-lo ou mesmo contrariar ou postergar a satisfação de suas vontades e apetites.


Aí ele mostra sua verdadeira personalidade, a de um Muammar Gaddafi de botina.


Afinal, caracteriza o coronel ser aquele que manda e desmanda, e para quem a lei é apenas uma sugestão.


E, embora Getulio Vargas tenha enfraquecido o poder das oligarquias, é inegável que a submissão ao coronelismo entranhou-se no espírito de um país de dimensões continentais e permanece viva, de um modo ou de outro.


Temos também a pitoresca figura do bacharel que, na visão de Machado de Assis, é um político aético, sem qualquer destaque intelectual e  “cujas ideias valem bem mais pelo que podem aparentar do que pelo que elas significam, assim como as ações do bacharel têm mais significado quanto mais publicidade alcançarem”. Caracteriza-se pelo ócio, superficialidade e posição social (ARAÚJO).


Na visão machadiana, o bacharel não teria qualquer consistência e sua intelectualidade se limitaria ao “linguajar bacharelesco (…) ideal para a vida política a que estava destinado” (ARAÚJO).


Lima Barreto, em toda sua argúcia, criticou o bacharelismo ao apontar o modo como se tornou uma aristocracia capaz de excluir de seus meios qualquer um que não participe do compadrio ou que pretenda realmente fazer algo pelo país:


“A nobreza dos doutores se baseia em alguma cousa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que os seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os seus filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito” (BARRETO). 

Imaginemos agora um país qualquer, fictício, que unisse essas duas figuras, uma mistura de coronel com bacharel, engendrando o abominável “corochel”: o indivíduo que consegue um diploma, de preferência de um curso no qual a opinião valha mais do que o conhecimento verdadeiro, cujo discurso prolixo seja puramente oco, que idolatra os rapapés da condição de “doutor”, mas que não abre mão da truculência quando contrariado, de forma que só tenha direitos a exigir, mas nenhum dever a cumprir.

O império das leis, cujo objetivo deveria ser tornar todos iguais em direitos e deveres, no fim das contas serviria apenas para blindá-lo contra a tentativa de responsabilizá-lo por suas condutas imorais e ilegais. Um corochel não responde por seus crimes, isso é coisa de gente sem estirpe.   


Enquanto o super-homem nas histórias em quadrinhos só pode ser brecado pela kriptonita, o “corochel” se sente invencível na teia de leis que criou e não possui ponto fraco. 


Talvez nesse fictício país pudéssemos pensar em uma operação policial que culminasse em um processo criminal capaz de desnudar os intestinos desse compadrio. De grande escala, envolvendo grandes políticos, empresários, ministros, doutores, interceptações telefônicas, fraudes, remessas de dinheiro para o exterior. Uma verdadeira lavagem a jato.


Se isso acontecesse no mundo que imaginamos, certamente a classe dos corochéis não permitiria que uma operação dessas tivesse condições de ocorrer duas vezes e manobraria o sistema para responsabilizar os honestos, as autoridades responsáveis, amordaçá-las, ameaça-las de abuso de autoridade e calar a todos, assegurando a impunidade..


O poder deles é tamanho, e tão inseguras e maleáveis são as leis em suas mãos, que nessa localidade quimérica ninguém seria capaz de se opor aos corochéis sem atrair para si toda sorte de perseguições, como processos de indenização e criminais, alegações de abuso de autoridade, embargos, sanções, procedimentos disciplinares, CPIs.


E não há a menor necessidade de que as denúncias tenham fundamento, basta que sirvam para destilar sobre a pobre vítima a sanha vingativa desses déspotas imaginários.


Mas engana-se quem acredita que acaba por aí. Como toda ordem militar, também nessa ficção há a hierarquia do “corochelismo”, que vai de “prachel” (o praça bacharel), até seu ápice “corochel”.


Ela se manifesta quando o mais simples aspone de autoridade, parado numa blitz, dá carteirada dizendo “sabe quem eu sou?”, passando pelo “cabochél” cheio de prerrogativas de entrar e sair quando e onde quiser sem ser revistado ou questionado, de falar o que quiser sem ser responsabilizado, até o pináculo do “mandonismo” que gesta procedimentos que de tão secretos os investigados sequer podem ter acesso.


Esse sistema solar de leis, normas e interpretações jurídicas orbita em volta da proteção do corochelismo, razão de tudo e para onde tudo o que se faz converge.


Jonathan Swift tivesse mais tempo talvez colocaria seu Gulliver a visitar essa terra estranha e narraria a queda do sistema, quando, inebriado com seu poder, esquece o corochel que ele é só uma ficção dentro da própria ficção, pois só existe enquanto contar com a cumplicidade torpe ou medrosa do povo que a admite.


A sua força é a força das leis voluntariosas de uma oligarquia imposta pelo poderia das armas coniventes.


Fora desse âmbito jurídico e burocrático que lhes blinda, no mundo real ninguém é à prova de balas, como nos lembra o conto “O Poço”, de Mário de Andrade (ANDRADE), no qual um opressor Joaquim Prestes, após forçar um de seus peões Albino a se expor a um gelado poço de lama para encontrar sua caneta, é confrontado pelo seu também empregado e irmão da vítima, José.


Vendo seu irmão começar a sofrer os efeitos da hipotermia, José vira-se para o coronel e diz que ele não irá mais descer ao poço. Confrontado em sua autoridade, “Joaquim Prestes ferido desse jeito, ficou que era a imagem descomposta do furor. Recuou um passo na defesa instintiva, levou a mão ao revólver”.


Mesmo diante da ameaça, José manteve-se calmo e resoluto: seu irmão não mais se submeteria a essa humilhação:


“Joaquim Prestes, o mal pavoroso que terá vivido aquele instante... A expressão do rosto dele se mudara de repente, não era cólera mais, boca escancarada, olhos brancos, metálicos, sustentando olhar puro, tão calmo, do mulato. Ficaram assim. Batia agora uma primeira escureza do entardecer. José, o corpo dele oscilou milímetros, o esforço moral foi excessivo. Que o irmão não descia estava decidido, mas tudo mais era uma tristeza em José, uma desolação vazia, uma semiconsciência de culpa lavrada pelos séculos”.


Nesse conto o coronel recuou após ter sido derrotado nessa briga de vontades, ciente de sua fragilidade diante da ameaça real que por um instante deixava de reconhecer sua autoridade. Mas só nesse momento, porque mesmo o rei nu, ainda é rei, e o coronel só não foi coronel por pouco tempo de lucidez e de insustentável esforço de José, logo abatido pelo peso moral de subserviência histórica diante do injusto.


Para pensar em um final feliz diferente desse conto para o nosso país fictício, talvez o povo percebesse que era senhor, não escravo, e se livrasse dessa quimera ao tirar-lhe o poder que ele mesmo, povo, o conferira. Não com os coletivismos delirantes dos discípulos de Marx ou da anarquia, que ainda são a perpetuação mais brutal do corochelismo, mas na consciência de que a posição de comando existe para favorecer a comunidade, ou oprimi-la em favor de interesses particulares.


O certo é que até esse despertar, os corochéis ainda continuariam a se sentir invencíveis e intocáveis, acima das leis dos homens e de Deus, capazes de, literalmente, qualquer coisa.


Até, claro, que a realidade viesse mostrar-lhes que também são mortais.



REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA:


ANDRADE, Mario de. Contos Novos. Livraria Martins Fontes. 6a edição. 1975. p. 74/94


ARAÚJO, Laíse Helena Barbosa. A crítica de Machado de Assis ao bacharelismo do século XIX. Intellectus. Ano IX. n. 2. 


BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Available from <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/bruzundangas.pdf>. access on  20  Feb.  2020.  https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003.


CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. Dados,  Rio de Janeiro ,  v. 40, n. 2, p. ,    1997 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm=iso>. access on  20  Feb.  2020.  https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003.


FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo. O romance como experiência cultural: o diálogo crítico de Lima Barreto. Crítica Cultural. Volume 5. Número 1. Julho de 2010. p. 164/185.


MORENO, Naiara Alberti Moreno. O Coronel e o Lobisomem nas veredas da literatura regionalista brasileira. Cultura Acadêmica. 2015.


NEVES, Daniel. Coronelismo. Available from <https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/coronelismo-no-brasil.htm>. access on  20  Feb.  2020


QUEIROZ, Patrícia Regina Venci. História e ficção nos trabalhos satíricos do escritor Lima Barreto: o humor como narrativa historiográfica. ANPUH - XXIII Simpósio Nacional de História. 2005.